Patricia Souza de Faria

CATIVOS NO ORIENTE PORTUGUÊS: QUESTÕES EM TORNO DA ESCRAVIDÃO E DO TRABALHO FORÇADO EM GOA (SÉCULOS XVI E XVII)

O objetivo desta apresentação é discutir aspectos da escravidão e do trabalho forçado em regiões do império asiático português, com base em reflexões produzidas pela historiografia que tem se dedicado a analisar a escravidão no “Indian Ocean World” (IOW) e em fontes documentais produzidas por eclesiásticos e inquisidores em Goa, nos séculos XVI e XVII. A nossa ênfase incide na região de Goa, situada na Índia, local que se tornou o centro do império luso-asiático e um considerável mercado de escravos no Índico.

Uma das motivações para refletir sobre esta temática é considerar que enquanto a escravidão tem sido um tema privilegiado pela historiografia dedicada à América Portuguesa, o mesmo não se pode afirmar sobre a escravidão na Índia de influência lusa. Evidentemente os contrastes são diversos, entre eles ressaltamos que a escravidão não foi a relação de trabalho dominante no subcontinente indiano, como foi no caso do Brasil. Além disso, existiam múltiplas formas de trabalho não livre na Índia, que não se reduzem simplesmente à categoria de “escravo” [Subrahmanyam, 2002: 464].

Quem eram as populações escravizadas em Goa? Qual a natureza do trabalho desempenhado por elas? Quais eram as formas de aquisição de escravos e escravas no Índico de influência lusa? Como coexistiram os tradicionais estatutos de dependência (vigentes na Índia antes da chegada dos portugueses) com as formas de sujeição e de trabalho forçado que os lusitanos tentaram implementar em Goa, a partir do século XVI?

Estas e outras questões emergem ao nos debruçarmos sobre o tema da escravização e do trabalho forçado no Oriente de influência lusa. Não poderemos tangenciar todos estes questionamentos nesta apresentação, todavia, podemos sublinhar que pelo menos uma das premissas consiste em não projetarmos as características do tráfico de escravos no Atlântico para o Índico. Nesse sentido, esta apresentação inicia com considerações gerais acerca da natureza da escravidão e do tráfico de escravizados no Oceano Índico [Médard, 2013; Thomaz, 1994; Carreira, 2013]. Em seguida, delimitaremos o escopo de análise para avaliar tais fenômenos históricos em Goa, por meio de fontes produzidas por portugueses (eclesiásticos e inquisidores) nos séculos XVI e XVII.

De acordo com Campbell [2011], o tráfico de escravos no IOW insere-se em uma economia global, caracterizada por um sistema de trocas mercantis de longa distância, que permitiu as ligações entre a África, o Oriente Médio, a Índia e o Extremo Oriente.  A escravidão e o tráfico de escravos no Índico principiaram antes da expansão europeia moderna e da consolidação do tráfico atlântico. Naquele universo, houve demanda por vários tipos de trabalho servil, envolvendo populações escravizadas provenientes de diversas origens, que possuíam diferentes estatutos sociais e cores de pele [Ibidem: 61]. Assim, populações de origem africana não foram as únicas traficadas, por terem sido escravizadas populações oriundas de diversas sociedades do Índico (do subcontinente indiano, do Ceilão, da China, do Japão, Malaca, Indonésia etc).

No IOW desenvolveram-se variadas formas de aquisição e de escravização, sendo uma delas a prática de capturar homens adultos de sociedades pastoris e de caçadores-coletores; uma parte dos capturados sofreria a execução, ao passo que crianças e mulheres passavam à condição de escravas e eram vendidas. Naquelas sociedades, considerava-se que os ganhos para vigiar homens adultos cativos seriam mais elevados, bem como se pensava que eram mais propensos a fugir ou a se rebelar que as mulheres e infantes.

Em sociedades agrícolas, tornou-se mais comum que homens adultos capturados em campanhas militares fossem mantidos submetidos à escravidão ou a formas de servidão. Todavia, mulheres e crianças representavam a maioria das pessoas traficadas no IOW [Campbell, 2004: xi-xix, Chaterjee, 2002:11].

Havia aqueles que se tornavam escravos involuntariamente por serem devedores e aqueles que se ofereciam voluntariamente como escravos para quitar seus débitos [Stanziani, 2016: 177]. Existia igualmente a possibilidade de pessoas serem escravizadas como punição por crimes cometidos. Era muito comum pessoas tornaram-se escravas por terem sido sequestradas. Desastres naturais também levavam pessoas a se tornarem escravas de forma “voluntária”, diante de situações caracterizadas por fome ou disseminação de doenças.

Os tipos de trabalho executados por escravizados eram bastante variados e incluíam labor agrícola, artesanato, pesca, comércio, trabalho em minas, em templos, em embarcações, serviço doméstico, funções militares, administrativas, diplomáticas, além de haver concubinas e eunucos escravizados. Cada sociedade situada nos mundos do Índico empregava diferentes vocábulos locais para designar os vários níveis de servidão e dependência existentes.  Nos contextos de influência lusa, Pinheiro [2009: 187-189] localizou cerca de 40 termos em português associados à escravidão na Índia.

Kumar [1993] ressalta que na Índia havia uma ampla gama de estatutos sociais associados a pessoas não livres, não sendo possível reduzir todos estes estatutos a uma única categoria: a de “escravo”. Além disso, a dicotomia entre “escravo” e “livre” não seria pertinente para as sociedades do Índico [Campbell, 2011:60-61], onde existiam formas de dependência em que uma pessoa (um grupo ou casta) de status inferior devia obrigações a outra de status superior, que por sua vez também devia obrigações a seus superiores [Stanziani, 2016: 176].

No estudo sobre a escravidão e o trabalho forçado no Índico de influência lusa, analisamos um contexto geográfico mais delimitado: a região de Goa, que foi conquista pelos portugueses em 1510. Goa tornou-se gradualmente o centro político e eclesiástico do “Estado da Índia”, isto é, dos domínios, conquistas, feitorias, fortalezas administradas pelos portugueses, desde o Cabo da Boa Esperança até o Extremo Oriente.

Os portugueses tentaram se inserir nas rotas mercantis preexistentes no Índico, mas também provocaram algumas mudanças na geografia e na sociologia do tráfico, por terem produzido desvios das rotas em favor deles, como a passagem do comércio das especiarias e de outros produtos por Goa [M’Bokolo, 2009: 302].  Goa adquiriu uma posição estratégica no comércio marítimo regular entre o Atlântico e o Oceano Índico, graças à Carreira da Índia – rota que ligava os portos de Goa e de Lisboa [Russell-Wood, 1998; Lapa, 1968; Antony, 2004]. Por estes motivos, Goa também se tornou um importante mercado de escravos, trazidos da África Oriental e de várias sociedades da Ásia.

Na cidade de Goa, escravos eram utilizados para atender os anseios de distinção social de autoridades civis e eclesiásticas portuguesas, desempenhavam atividades como venda de água, de alimentos, limpeza, trabalhos domésticos, atuavam nas embarcações. A estimativa era a de que havia cerca de 8.000 escravos na cidade de Goa, na década de 1630 [Subrahmanyam, 1995]. Além de atender a necessidades locais, tais escravizados poderiam ser transferidos de Goa para outras regiões do império luso-asiático ou levados para Lisboa, local em que podiam ser revendidos [Faria, 2016].

A partir da listagem das 3.444 pessoas sentenciadas pela Inquisição de Goa (entre os anos 1561 e 1623) podemos ter um panorama a respeito da diversidade de populações escravas dos domínios luso-asiáticos [BNP, Cód.203]. Isto porque este tribunal da Inquisição possuía a sede em Goa, mas tinha virtualmente a competência para julgar as populações que cometiam delitos desde o Cabo da Boa Esperança até o Extremo Oriente (o “Estado da Índia”).

A listagem citada deve ser entendida como uma amostragem que traz informações sobre alguns escravos, geralmente cristianizados e que foram sentenciados pela Inquisição de Goa, ou seja, ela não se baseia na totalidade da população escrava existente no império asiático português.

Na listagem das 3.444 pessoas sentenciadas pela Inquisição de Goa localizamos 227 referências a homens e mulheres que teriam desfrutado do estatuto de “escravas”, além de outras mencionadas como “forras” e algumas descritas com vocábulos que sugerem estatutos de dependência e de sujeição (“faraz”, “moço”).  A maioria dos escravos é formada por homens (cerca de 80% dos 227 casos), batizados na fé católica quando adultos e filhos de pais muçulmanos ou gentios. O principal delito atribuído a tais cativos era o de retroceder às crenças e práticas religiosas muçulmanas.

Em tais registros [BNP. Cód.203], o vocábulo “cativo” (ou “cativa”) é o mais empregado, de modo que a palavra “escravo” é bem menos recorrente. Em vários registros, o vocábulo cativo é acompanhado de menção à “casta” da pessoa sentenciada (Quadro 1).

QUADRO 1


A partir da menção às “castas” conjecturamos qual teria sido a macrorregião de origem do escravizado. Os cativos eram provenientes de diversos territórios asiáticos, especialmente do subcontinente indiano, oriundos de Goa, Damão, Diu, Chaul, Baçaim, além de territórios da Costa do Malabar, do Guzarate, de Bengala, Negapatão e São Tomé. Havia escravos do Ceilão, China, Japão, Java, Malaca, Maluco, Pegu, Arracão, Banda e Ormuz [BNP, Cód.203]. Há referências a escravos originários da África: de Moçambique, Mombaça, Etiópia, Rios de Sena e Cuama, porém, os escravos africanos não são numerosos entre estes sentenciados pela Inquisição de Goa [Hassell, 2015].

Contudo, nem sempre a informação é suficiente para identificarmos a procedência, assim como nem sempre é possível saber se a classificação usada na documentação se refere ao local de nascimento ou de aquisição (captura, compra) do escravo. Ademais, a forma como a expressão “casta” foi empregada na documentação emerge como uma categoria colonial, ou seja, a forma pela qual os portugueses se apropriaram das categorias locais de estratificação social.

Conforme a tradição védica, existiam quatro varnas, que os portugueses denominavam de castas: os brâmanes; kshatriyas; os vaishyas e os sudras [O’Flaherty, 1998]. Além disso, a estratificação social era definida a partir de divisões em grupos ainda menores, “jatis” [Kumar, 1993]. No Quadro 1 é possível notar que a noção de “casta” empregada pelos portugueses nos séculos XVI e XVII mescla ideias em torno do local de origem, a partir de uma geografia bastante imprecisa, como casta “bengala” (associada ao amplo Golfo de Bengala) “malabar” (no litoral ocidental da Índia), “java” (que pode se relacionar à Java ou a outras regiões da Indonésia ou proximidades) entre outros exemplos. Por vezes, a casta é empregada com um sentido de identidade religiosa, como “casta mouro”, designação extremamente genérica.

Apesar de tais desafios metodológicos, a análise de tais registros sobre os cativos sentenciados pela Inquisição de Goa nos possibilita vislumbrar a diversidade de povos que foram escravizados nas áreas de influência portuguesa no Índico, bem como a circulação de tais escravizados. Por exemplo, Francisco, “moço” de Amador Fernandes, casta canarim, nascera em Chaul (na Índia) mas vivia em Ormuz (no Golfo Pérsico) quando foi processado pela Inquisição de Goa, no ano de 1612, por suspeitas de retornar à fé islâmica [BNP, Cód. 203, m.2, n.30, im.361]. Outro caso é o de Felipe, homem alforriado descrito como “foi cativo jao”, isto é,  proveniente de Java ou de seus arredores, mas que vivia em Goa alforriado quando foi processado pela Inquisição, em 1602 [Idem, m.6, n.13, fl. 333]. O cativo Antônio era um “cafre” nascido na Costa de Melinde (na África), todavia, habitava em Cochim, na Índia [Idem, m.1, n.27, fl. 6v].

Normalmente não há muitas informações sobre o tipo de trabalho desempenhado, porém, localizamos referências a alguns ofícios especializados, como o exercido por Salvador, moço forro que era sapateiro [Idem, m.1,n.25, fl.609v]. Manoel Pereira era um cativo descrito como casta “canará”, que atuava como cozinheiro de Agostinho [Idem, m.3, n.38, fl. 498]. Um interessante exemplo é o do cativo Francisco de Matos, que foi descrito como “capado”, o que significa que era um eunuco [Idem, m.7, n. 6, fl. 338]. Sabe-se da relevância dos escravos eunucos nas sociedades do Índico [Chaterjee, 2002], todavia, pouco sabemos sobre a vida de Francisco de Matos, apenas que era proveniente do Porto Grande Bengala, filho de pais muçulmanos e que foi sentenciado pela Inquisição de Goa em 1612, por suspeita de retroceder ao islamismo.

Se a listagem de sentenciados pela Inquisição de Goa contém referências a escravizados que habitavam em diferentes localidades do império asiático português, há outro conjunto documental que se refere a escravos que viviam especificamente em Goa e nos seus arredores. Trata-se de um manuscrito intitulado “Cartas de Alforria aos escravos, 1682-1759” [Arquivo Histórico de Goa (HAG), Cód. 860], que foi redigido pelo “Pai dos Cristãos” (que em sua origem era um cargo era laico, mas que foi ocupado por jesuítas em Goa).

Entre os autores que analisaram as “Cartas de Alforria aos escravos”, há algumas divergências na contagem dos dados. Por exemplo, Ames [2008] localizou um total de 760 escravos registrados no período de 1682 a 1699: “The Codex contains information on 760 slaves who received manumission between 1682 and 1699” [Ibidem].  Por sua vez, Souza (2006) contabilizou cerca de 750 casos abrangendo todo o período em que houve registros no manuscrito, isto é, de 1682 a 1760 (quando de fato o manuscrito termina). Cardoso [2012] menciona 753 casos no intervalo de 1682 a 1759, convergindo com o cômputo apresentado por Souza [2006].

A partir da análise dos registros produzidos no século XVII (1682 a 1700), podemos destacar o seguinte perfil dos listados nas “Cartas de alforria”. Em primeiro lugar, não são classificados como “escravos”, sendo normalmente descritos como “forros”, que “não podem ser captivos” ou que não eram obrigados a nenhum tipo de “captiveiro” (HAG, Cód. 860). Porém, a análise do manuscrito sugere que viviam em condições de dependência, de vínculos com seus senhores, de modo que não estavam livres para se recusar a servi-los.

Nem sempre há detalhes sobre o tipo de ofício desempenhado, mas alguns dos escravos foram descritos como alparqueiros, oleiros, carpinteiros, pescadores, lavradores, tecelões. Os elementos presentes nas “Cartas de Alforria” parecem denotar a importância da escravidão doméstica em Goa, seja em função do predomínio de escravos do sexo feminino (cerca de 66% dos casos) e de cativos ainda meninos ou muito jovens. Destarte, há maior incidência de pessoas com idade entre 5 e 14 anos de idade e, em segundo lugar, entre 15 a 21 anos.

Evidentemente, é preciso ter cuidado ao fazermos afirmações sobre a faixa etária dos escravizados, por causa da insuficiência de informações nos documentos e porque a concepção de infância na Índia no século XVII era distinta, assim como os critérios (aparência, altura) usados para atribuir a idade de alguém [Campbell, Miers & Miller, 2009: 3].

Não obstantes estes desafios, podemos afirmar que as “Cartas de alforria dos escravos” de Goa abarcam predominantemente mulheres e crianças (ou jovens), o que parece estar em consonância com o perfil dominante das pessoas traficadas no Sul da Ásia [Chaterjee, 2002: 11]. Os valores gastos para comprar crianças eram mais baixos que os empregados na aquisição de adultos. Por serem retiradas em tenra idade de seu grupo de parentela, as crianças raramente preservavam memórias sobre a terra natal e os familiares, o que facilitava torná-las mais leais e dependentes dos proprietários [Idem: 12].

Sobre a origem de tais populações, entre 1682 e 1700, localizamos nove menções a “negrinhas”, com idade de 7 a 15 anos, porém, não é possível afirmar se eram provenientes da África. Três delas são classificadas como pertencentes a castas de origem indiana (“gatual” e “cole”), ao passo as outras seis mulheres não receberam uma classificação mais específica [HAG, Cód. 860]. Há o caso de uma provável mulher “abexim”, isto é, da Abissínia, chamada Natália [Idem, fl. 6v; Souza, 2006: 176]. No intervalo de 1682 a 1759, Cardoso [2012: 101] localizou seis referências a pessoas trazidas da África, todas elas mulheres.

Assim, a maioria das pessoas descritas nas “Cartas de alforria dos escravos” de Goa não era proveniente da África ou não foi percebida como tendo procedência africana.  Tais populações foram descritas como originárias de regiões da própria Índia, em função da “casta” (ou “jati”) que lhes foi atribuída. A casta mais frequente é a “gatual”, um pouco mais de 50 % das pessoas, o corresponde a mais de 370 casos que foram listados entre 1682 e 1700. Em segundo lugar aparecem os “curumbins”, que representam um pouco mais de 13% dos escravos. Em terceiro, casta “balagate” (quase 5%); em quarto, a casta “sudra”, seguida pelas castas “charado”, “cole” e “vânia”.

De acordo com Pinto [1992], “gatual” remetia provavelmente ao habitante dos Gates (cordilheira da Índia). Em nossas pesquisas, localizamos em um manuscrito produzido no século XVII a indicação de qual seria a origem geográfica associada às castas (ou jatis): “Os Balagatins são os que habitam além da serra do Gâte; e os Gatuaes os que residem daquém, na fralda ao pé della”.  Balagate e gatual seriam castas ligadas à gente “pobre, faminta, quasi [nûa], rude, e sogeita a escravidão” [Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Reservados, Cód.846].

Logo, gatuais e balagates foram descritos como muito pobres, pessoas vendidas por ladrões ou pelos próprios pais em situação de fome, o que nos remete ao que a historiografia aponta como formas recorrentes de se tornar “escravo” no Índico: sequestro por “ladrões”, por traficantes ou a venda pelos próprios pais.

Se por um lado os gatuais e balagates são associados a castas (ou jatis) de estrato inferior, por outro lado, a casta chardó é a terceira mais recorrente nas “Cartas de alforria” de Goa. Este dado desafia a suposta correlação entre castas baixas, “jatis” inferiores e o estatuto de “escravo” na Índia [Chaterjee, 2002: 10-12], visto que os chardós costumavam desfrutar de uma posição privilegiada em Goa [XAVIER, 2008].

Na sequência, as castas “sudra” e “cole” são as mais citadas, sendo os coles “uma casta de sudras, que se divide em dois ramos”: um deles “vivendo nas planícies do Guzarate e do Concão, ocupa-se em pescaria e hortiltura, e outro, habitando nos Gates ocidentais, dedica-se à caça e à salteagem” [Dalgado, 1919].

Em linhas gerais, podemos afirmar que uma ampla variedade de povos foi submetida à escravidão e a outras formas de trabalho forçado no império asiático português. Todavia, nem sempre é fácil discernir qual era o efetivo estatuto desfrutado por tais pessoas, em função da forma pela qual foram descritas nos registros documentais produzidos por inquisidores e eclesiásticos em Goa, nos séculos XVI e XVII.

Apesar de tais dificuldades, consideramos que é possível analisar a escravidão nos espaços luso-asiáticos em diálogo com a historiografia que se dedicou ao estudo do tráfico de escravos e da escravidão nos mundos do Índico [Allen, 2017]. Esperamos que as considerações que fizemos nesta apresentação possam ser compreendidas como um esforço de acompanhar as iniciativas já existentes no campo dos estudos luso-asiáticos (Thomaz 1994; Pinto,1992; Carreira, 2013; Pinheiro, 2009; Ehalt, 2018; Sousa, 2014; Manso & Seabra, 2014), mas que sejam também um convite a novas reflexões sobre a temática.

Referências
Patricia Souza de Faria é Professora Associada do Departamento de História e Relações Internacionais e do PPGHR da UFRRJ. Bolsista do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).
Mail: patricia@carvano.com.br

Fontes
Arquivo Histórico de Goa (HAG), Cód. 860, Cartas de Alforria aos escravos, 1682-1759.
Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, Cód.846.
Biblioteca Nacional de Portugal, Cód. 203, Repertório geral de três mil e oitocentos processos despachados pelo Santo Ofício de Goa desde a sua constituição até 1623 de João Delgado Figueira.

Bibliografia
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50 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, eu realmente sequer sabia da existência de escravos em regiões do império asiático português, embora não fique surpreso. Interessou-me muito o fato da documentação indicar uma quantidade pequena de escravizados provenientes da África, ao contrário do que ocorreu na América Portuguesa. A finalidade da escravidão em Goa, e em outras regiões do império asiático português, que parece apontar para atividades predominantemente domésticas, poderia explicar de algum modo, a pouca presença de escravos de origem africana?

    Cristiano Santos Carmo

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    1. Caro Cristiano, obrigada pela pergunta.
      Como temos como referência a escravidão no Atlântico tendemos a pensar basicamente em africanos escravizados, porém, nas sociedades do Índico, populações de diversas origens poderiam ser escravizadas. Além disso, podemos dizer que no caso do Atlântico o tráfico de escravos africanos se tornou um negócio “em si mesmo”: por mais que outros produtos fossem comercializados (cachaça, tecidos indianos), o que era mais relevante era o tráfico de escravos. Isto não se aplica ao Índico, onde tráfico de escravos se integrou ao comércio de longa distância de produtos de luxo locais, de modo que os escravos não consistiam no “produto” central deste comércio.

      Sabe-se que o século XVI foi um período em que um grande número de escravos africanos da região da Abissínia foi exportado para a Índia, após terem sido transportados no interior da África em caravanas que cruzavam desertos e cidades e, em seguida, atravessarem os mares em direção à Península Arábica ou ao subcontinente indiano. Os portugueses desejaram atuar como intermediários (substituindo parcialmente os árabes) no comércio dos produtos vindos da Índia (tecidos e pérolas) trocados na África por ouro, marfim e escravos. Segundo Pedro Machado (no livro Ocean of Trade), a importação de escravos africanos reduziu-se no século XVII, provavelmente associada ao investimento dos portugueses em busca de escravos “asiáticos” para traficá-los, o quais eram adquiridos especialmente a sudeste de Bengala e Birmânia, via Malaca e Manila. Parte desses escravos “asiáticos” foi revendida, destinada a mercados situados em colônias espanholas, como o México.

      Respondendo sobre por que poucos escravos africanos em Goa, posso destacar que em relatos de viajantes há menção à presença de escravizados de diferentes procedências em: vindos de Moçambique, Etiópia e de várias partes da Ásia. Os viajantes tendem a associar a origem dos escravos a habilidades específicas. Por exemplo, o viajante Linschoten afirma que os escravos de Moçambique são considerados os mais fortes e que fazem o trabalho mais sujo e mais duro. No caso das fontes que analisei, elas revelam o predomínio de escravizados de origem asiática, mas como expliquei no artigo, são fontes que se referem a uma parcela dos escravos (e não correspondem à totalidade dos escravos de Goa ou dos que existiram no império asiático português). De acordo com as fontes que analisei, emerge, sim, um perfil de escravos cristianizados, oriundos predominantemente da Índia, que desempenharam serviços domésticos, carregavam seus senhores em palanquins, vendiam alimentos na cidade ou desempenhavam trabalhos agrícolas nas aldeias.

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  2. Como aponta no próprio texto “... a escravidão não foi a relação de trabalho dominante no subcontinente indiano, como foi no caso do Brasil.” Apesar dessa grande diferença, e das poucas pesquisas sobre a escravidão em regiões do império asiático português, especificamente na Índia, podemos esperar ou já poderia ser apontada alguma nova reflexão, ou olhar diferente sobre a escravidão na América Portuguesa provocados por essas pesquisas?

    Cristiano Santos Carmo

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    1. Penso que algumas ideias tenho sido delineadas neste sentido. Por exemplo, por Cláudio Pinheiro que fez um esforço de comparar/conectar Brasil e Índia
      http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2002000300001
      Ernestine Carreira também tem sistematizado o que especialistas sobre a escravidão na Ásia e o que especialistas em escravidão no Brasil têm produzido, permitindo um olhar bem mais panorâmico, que permita identificar as ligações, as conexões, a complementaridade do eixo do Atlântico e do Índico. E espero que mais pesquisas explorem tais questões

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  3. Considerando que "populações de origem africana não foram as únicas traficadas" como diz o texto, há algum registro de escravos de Goa trazidos para o Brasil? Roberto Carlos Simões Galvão

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    1. Caro Roberto, existem registros de escravos levados de Goa para o Brasil, mencionados por Philomena Antony: http://funag.gov.br/loja/download/1027-Relacoes_Intracoloniais_Goa-Bahia_1675-1825.pdf

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  4. Sobre o documento "Cartas de Alforria", você destacou no texto: "Em primeiro lugar, não são classificados como “escravos”, sendo normalmente descritos como “forros”, que “não podem ser captivos” ou que não eram obrigados a nenhum tipo de “captiveiro” (HAG, Cód. 860)."

    Entendi que se tratava de pessoas reduzidas à condição de escravidão mas cujo cativeiro foi considerado injusto e por isso foram alforriados. É isso mesmo?
    Quais as justificativas (morais, jurídicas ou teológicas) para a não escravização de tais povos?

    Obrigado pelo bom texto,
    Carlos Rocha

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  5. Caro Carlos,
    as chamadas “cartas de alforria” foram elaboradas pelo Pai dos Cristãos, que tinha várias atribuições, sendo uma delas fiscalizar as condições de cativeiro, registrar os anos de serviço a que os moços e moças ainda estavam obrigados a cumprir, além de fiscalizar se as alforrias estavam sendo concedidas aos escravizados, de acordo com os casos previstos pela lei portuguesa aplicada no Oriente.
    A lei portuguesa que tratava desta questão se inspirava nas amplas discussões (jurídicas, teológicas) em torno dos “justos títulos de cativeiro” que, resumidamente, seriam as condições em que se considerava o cativeiro legítimo: nascer do ventre de uma mulher escrava; ser cativo em função de “guerra justa” ; quando alguém se vende a si mesmo; quando os pais vendem o filho por causa de extrema necessidade. No Oriente, adicionaram a estes quatro casos mais um: o cativeiro amparado em alguma lei/costume local.
    O exame das condições de cativeiro cabia à justiça secular, em Goa. Porém, aparentemente, o Pai dos Cristãos passou a adquirir mais influência em vários campos de atuação e um deles seria a fiscalização dos cativeiros. Em outros documentos, há menção ao fato de os portugueses serem difíceis de conceder a alforria aos seus escravos, mesmo nos casos previstos pela lei.
    Nas “Cartas de alforria”, é comum encontrar registros em que o Pai dos Cristãos declarava que o (a) moço (a) não estava obrigado (a) a nenhum “legítimo cativeiro”. Em alguns casos, o Pai dos Cristãos declarava que o (a) moço (a) havia sido furtado (a), isto é, sequestrado, não sendo esta forma de cativeiro considerada lícita. Porém, mesmo identificando que não estavam sendo obrigados a nenhum lícito cativeiro, era comum que o Pai dos Cristãos declarasse que o (a) moço (a) ainda deveria servir ao amo por mais alguns anos, como uma forma de recompensa por terem recebido uma educação cristã.
    Mesmo descritos como não sendo obrigados a “nenhum justo cativeiro”, mesmo sendo descritos como “forros”, ainda deveriam alguns anos de serviço ao amo. Por sua vez, o senhor de tais moços/ moças comprometia-se a cuidar bem deles, ensinar um ofício, conseguir um casamento etc. Alguns senhores alegavam que tinham estes moços/moças em sua casa como se fosse seus filhos. Por esta razão, considero que as “cartas de alforria” reforçam a própria ambiguidade do que era ser escravo (ou não) em Goa.

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  6. Em Seu artigo, aponta-se que a a escravidão não foi a relação de trabalho dominante no subcontinente indiano, assim como nos estados Unidos e no brasil. Sendo assim pode-se apontado de qual forma o tratamento era diferente ou similar aos outros países que obtiveram a escravidão como economia?.

    att: Ana Valéria de Queiroz Andrade

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    1. Cara, Ana. Obrigada pela pergunta. Mencionei que a escravidão não era a forma de trabalho dominante no subcontinente indiano porque existiam outras formas de trabalho caracterizados por graus diferentes de dependência. Por exemplo, o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam menciona uma categoria social que possuía um estatuto ambíguo, como o de “servos” (“agrestic serfs”). Além das diversas formas de mão-de-obra bastante controladas, existiam trabalhadores que podiam atuar como produtores independentes, caso de tecelões, que não eram empregados de alguém, trabalhando por sua conta, usando a mão de obra de sua família, mas dentro do sistema de castas

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  7. Sabe-se que as populações de origem africana não foram as únicas traficadas, dentro do território debatido. Sendo assim os escravos de outras etnias e países, tiveram alguma relação de troca de contatos culturais?


    Firmo Daniel Lima Gonçalves

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    1. Obrigada pela pergunta. Sim, há estudos que tratam das trocas culturais, do impacto de tais contatos na música, na dança, nas línguas e, em alguns casos, na emergência culturas crioulas.

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  8. Olá professora, boa noite.
    Primeiramente parabéns pelo texto,em seguida, gostaria de questionar acerca da natureza violenta da escravidão na Ásia portuguesa, ou seja, como se dava as ações coercitivas - em casos de escravidão involuntária - assim como as que visavam a manutenção da ordem; chego a esta questão em virtude das características arbitrárias da escravidão na América do Sul.

    Grata.
    Nathalia Alcantara Camargo Pereira
    nathaliacamargo14@gmail.com

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    1. Cara Natália, obrigada pela pergunta. Primeiro, a natureza violenta poderia estar associada à forma de aquisição, por meio do cativeiro de um inimigo de guerra, por meio do sequestro de crianças, por exemplo. Segundo, o tratamento que tais escravos recebiam: nem sempre sabemos detalhes sobre o cotidiano, mas há várias informações sobre maus tratos.
      Por outro lado, é preciso lembrar que existiam tantas formas de escravidão, algumas delas em que escravizados poderiam até conseguir atingir uma posição de poder em regiões da Índia, como foi o caso do escravo Malik Ambar, que se tornou um importante líder militar.

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  9. Prezada Patricia,
    parabéns pelo texto.

    Pode-se dizer que os portugueses se apropriaram de padrões/formas de escravidão no oriente; como o foi na África?
    Ou em outras palavras... se beneficiaram de um sistema escravocrata já estabelecido através da utilização do mesmo, ou até aprimorando-o?

    Desde já agradeço,
    Fábio Henrique Silva dos Santos

    e-mail utilizado neste Simpósio: fabhssantos@yahoo.com.br

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    1. Obrigada pela pergunta. Sim, os portugueses se apropriaram de formas locais de escravidão, considerando as formas tradicionais de se adquirir “escravos”, como foi a compra daqueles que se “vendiam”, a aquisição de crianças vendidas por famílias em situação de necessidade etc.
      Porém, também tentaram impor sua forma de perceber as relações de trabalho que nem sempre se ajustavam a costumes locais, sendo muito provável que passassem a considerar “escravos” algumas pessoas que localmente não eram percebidas como tal. Isto parece melhor documentado para o caso do império espanhol, por terem sido localizados mais documentos em que asiáticos tentavam provar que estavam vivendo como escravos, mas cujo real estatuto não seria este, mas imposto por proprietários europeus.
      Outra questão é que na sua pergunta você indaga se os portugueses “se beneficiaram de um sistema escravocrata já estabelecido”. A minha observação é que talvez “sistema escravocrata” não seria uma expressão válida para grande parte das sociedades do Índico, pois em poucas delas (como em Ilhas do Índico colonizadas pelos franceses) houve um sistema de produção pautado em plantantions.

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  10. Patrícia, me chamou a atenção quando você falou que o Pai dos Cristãos usava também classificações do tipo "pode" ou "não pode ser escravizado". Isso indicaria um outro tipo de entendimento da questão da servidão, mais ampla, não subjugada necessariamente à noção de escravidão, não é? Seria possível entender o alcance da noção de servidão como maior do que o de escravidão (por Guerra Justa etc), englobando também as formas de dependência locais? Seria interessante cotejar estas taxonomias religiosas (porque o são mais do que sociais, a meu ver) com taxonomias seculares dos "escravos". Abraço, Rômulo.

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    1. Rômulo, provavelmente sim, a impressão é que o Pai dos Cristãos está operando com uma noção mais ampla sobre qual seria a condição desfrutada pelos moços, moças e adultos que chegavam até ele. Como se o Pai dos Cristãos tivesse uma grelha mental em que identificasse vários tipos de estatuto, de formas de dependência, ou seja, não se restringiu ao que pensamos em termos de escravo e escravidão. Muito obrigada por ressaltar a importância de atentar para as taxonomias religiosas! abraços

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  11. Patrícia, boa noite! Parabéns pelo texto!
    Na verdade, tenho três perguntas:

    1) Considerando que o tipo de trabalho era bastante diverso, existia algum critério para designação aos variados tipos de trabalho? Uma determinada casta era designada para trabalho doméstico, outra para um cargo diplomático, por exemplo?

    2) Os "escravos" "voluntários" e os involuntários captados por dívidas, eram libertos ao quita-las? Existia esse controle?

    3) Como os "escravos" alforriados se organizavam socialmente? Pensando no caso do Brasil, que foram constituindo a massa marginalizada da sociedade.

    Abraços,
    Marisa

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    1. Obrigada pelas perguntas. Sobre a 1: Considerando que o tipo de trabalho era bastante diverso, existia algum critério para designação aos variados tipos de trabalho? Resp: Esta é uma das dificuldades da pesquisa, pois existiam vários vocábulos nativos que designavam uma miríade de estatutos de dependência/servidão. E, por sua vez, os portugueses empregavam ora seus próprios vocábulos, ora se apropriavam de algumas expressões nativas para classificar os estatutos sociais.
      Uma determinada casta era designada para trabalho doméstico, outra para um cargo diplomático, por exemplo? Resp: Há autores que tendem a demonstrar a relação entre “casta” (baixa) e ser escravo, enquanto outros consideram que esta relação foi mais complexa. Mas há estudos que indicam que parecer ter existido uma valorização de escravos abissínios para o exercício de funções militares na Índia.

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    2. 2) Os "escravos" "voluntários" e os involuntários captados por dívidas, eram libertos ao quita-las? Existia esse controle?
      Resp: Na prática, nem sempre eram libertados. Imagine que alguém se torna escravo por dívidas, mas ao servir a um senhor ele receba casa, comida e alimentos, isto pode levar a que o escravo nunca consiga eliminar a dívida. Logo, a condição de escravo que seria temporária pode se tornar permanente.
      3) Como os "escravos" alforriados se organizavam socialmente? Pensando no caso do Brasil, que foram constituindo a massa marginalizada da sociedade.
      Resp: Para o caso de Goa, que conheço mais, ainda faltam mais estudos que nos forneça maiores informações sobre como os alforriados se organizavam. Uma das dificuldades é que nas fontes portuguesas (que eu analisei) nem sempre se menciona que a pessoa é um alforriado. Recordo-me de ter localizado o registro de duas pessoas que haviam sido alforriadas, mas este estatuto não foi sequer mencionado em uma fonte, só pude saber que haviam sido por ter localizado outras fontes sobre as mesmas pessoas. Porém, como se tratam de escravos, nem sempre temos acesso a documentos que tenham detalhes sobre a vida deles, sendo comum apenas o nome (às vezes só o nome cristão e não o de nascimento), a “casta”, a idade. Encontrei mais informações sobre a vida de alforriados asiáticos que foram levados para Portugal, tema que estou investigando neste momento e espero poder ter mais informações no futuro.

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  12. Bom dia! O Império Português se tornou potência graças ao colonialismo e ao trabalho escravo. Podemos comparar os sistemas de trabalho escravo indiano semelhante ao praticado no Brasil?

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    1. Caro Benedito. Obrigada pela pergunta. Os sistemas eram muito diferentes. O trabalho escravo não era a forma de predominante na Índia, enquanto no Brasil foi essencial para manter o sistema produtivo dominante. Na Índia existiam várias formas locais de estratificação social, como as castas, várias formas de dependência que não significavam ser submetido à escravidão. Sabemos que Brasil existiram vários tipos de escravos (das plantations, escravos urbanos etc), mas no caso da Índia existiram escravos que se tornaram, por exemplo, líderes militares poderosos, como o famoso Malik Ambar. Apesar de tais diferenças, exercícios de comparação podem ser interessantes, tomando sempre a cautela quanto às especificidades de cada localidade.

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  13. Gostaria de saber mais ou algumas indicações de leitura para aprofundar sobre os problemas encontrados pelos portugueses na inserção das rotas mercantis preexistentes no Índico e quais seriam as rotas. A passagem do comércio das especiarias e de outros produtos por Goa é uma resposta a esses empecilhos ou está conectada com outro motivo particular?

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    1. Sobre as tradicionais rotas comerciais e como os portugueses tentaram se inserir nelas:
      Desde os tempos medievais, o comércio de escravos liderado (mas não exercido exclusivamente) pelos árabes caracterizou-se pelas ligações entre as regiões da costa oriental africana, da Abissínia, da Península Arábica e do mundo árabe-persa. A Península Arábica funcionava como um espaço intermediário, já que as populações escravizadas eram destinadas também a outros mercados, como o persa, o turco e o indiano. Sobre o comércio de escravos, havia igualmente o comércio direto entre agentes africanos e indianos, sem intermediários árabes ou europeus, com destaque para as ligações mantidas com os mercados do Decão, do Guzarate e de Bengala. Os portugueses desejaram atuar como intermediários (substituindo parcialmente os árabes) no comércio dos produtos vindos da Índia (tecidos e pérolas) trocados na África por ouro, marfim e escravos. Logo, os lusitanos tentaram colocar em xeque o domínio muçulmano na região e podem ser vistos como mais um dos agentes que atuaram nas antigas rotas mercantis, entre elas, os circuitos de venda de populações escravizadas.
      Sugestão de bibliografia para detalhamento das rotas comerciais:
      CHAUDHURI. O comércio asiático. IN: BETHENCOURT, F. & CHAUDHURI, K. (dir.) História da Expansão Portuguesa. Navarra: Círculo de Leitores, 1998, v. 2.
      RUSSELL-WOOD, J. Um mundo em movimento : os portugueses na África, Ásia e América, 1415-1808. [Lisboa] : Difel, 1998.
      Elikia M’Bokolo. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2011.
      Henri Médard, Marie-Laure Derat et al (org.). Traites et esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien. Paris: Karthala, 2013.

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  14. Quando foi afirmado que a maioria dos escravos é formada por homens (cerca de 80% dos 227 casos), batizados na fé católica quando adultos e filhos de pais muçulmanos ou gentios e que o principal delito atribuído a tais cativos era o de retroceder às crenças e práticas religiosas muçulmanas, foi encontrada alguma ao hinduísmo?

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  15. Sim, só que na época não usavam a palavra hinduísmo, pois o que aparece é "gentilismo". Algumas dezenas de casos entre os 227

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  16. Parabéns pelo texto! Você cita que dos registros portugueses sobre Goa analisados, um numero considerável de pessoas escravizadas não era oriunda da áfrica, os registros de atividades geralmente apontam para serviços domésticos , um elemento que se destaca é a pratica religiosa de muitos desses elementos. Por mais que o catolicismo fosse imposto aos mesmos através do batismo, havia uma grande variedade de religiões na Índia, você poderia falar um pouco sobre essa relação de resistência por parte dos escravizados com relação a imposição de uma nova religião , buscando manter a religião anterior, levando em consideração a condição de cativos dos mesmos naquela região?
    att, Alaéverton Maicon de Andrade

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    1. Caro Maicon, muito obrigada pela pergunta. Este tópico é realmente interessante. Tentei explorar um pouco sobre esta tensão entre imposição do catolicismo e o retorno à antiga fé em um artigo. Peço licença para divulgar para você:"Entre a cruz e o islã: escravos e forros diante da Inquisição de Goa"

      https://www.academia.edu/34070773/FARIA_Patricia_Souza_de._Entre_a_Cruz_e_o_Isl%C3%A3_escravos_e_forros_diante_da_Inquisi%C3%A7%C3%A3o_de_Goa_s%C3%A9c._XVI-XVII._In_MARTINS_William_HERMANN_Jacqueline._Poderes_do_sagrado_Europa_Cat%C3%B3lica_Am%C3%A9rica_Ib%C3%A9rica_%C3%81frica_e_Oriente_Portugueses_s%C3%A9culos_XVI-XVIII_._Rio_de_Janeiro_Multifoco_2016_p.383-406

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  17. Boa noite, Patrícia.
    Mesmo havendo subdivisões dessa escravidão naquela região, há registros de rebeliões ou algo semelhante aos Quilombos aqui no Brasil?
    Fabiano Pio da Silva

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    1. Penso no caso dos Siddis (abissínios levados para a Índia) passaram a viver em Janjira, em uma região fortificada perto de Mumbai, onde formara um pequeno reino, um pequeno principado.

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  18. Em relação a religião, pode-se dizer que esta consiste em fator contribuinte ou indispensável a escravização?
    Diaciz Alves de oliveira

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    1. Diaciz, obrigada pela pergunta. As leis portuguesas proibiam a escravização daqueles que já fossem cristãos (mas na prática, havia caso de cristãos etíopes que eram escravizados, desrespeitando as leis).
      O que houve foi um debate sobre se os portugueses deveriam libertar (alforriar) os escravos [muçulmanos ou hindus] depois que eles se convertessem ao cristianismo.
      Eu escrevi um artigo em que detalhei esta questão: Cruzando fronteiras: conversão e mobilidades culturais de escravos no império asiático português (séculos XVI e XVII)

      https://run.unl.pt/handle/10362/34970

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  19. Pode-se afirmar, que a escravidão fora um mal necessário ao desenvolvimento, nos mais diversos setores ou áreas que esta tenha sido implantada , como por exemplo no brasil e na América latina?
    Diaciz Alves de Oliveira

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    1. Diaciz, não penso que a escravidão tenha sido um mal necessário, pois isto significaria assumir que a escravização de homens, mulheres e crianças tenha sido algo "necessário”, imperativo, para o desenvolvimento econômico, como se não existissem outras relações de trabalho possíveis.
      É óbvio que menciono isto a partir dos nossos valores atuais, assentados na ideia de igualdade e de direitos humanos. Em sociedades do passados como nas descritas no artigo, os valores eram outros, visto que para elas era justificável a escravidão, o que felizmente não aceitamos hoje. Se ainda existem práticas ilegais de escravidão (ou de trabalho análogo ao escravo), elas são vistas como inaceitáveis e que devem ser extirpadas.

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  20. ola a escravidão nesta época era como aqui no Brasil? com os mesmo maus tratos e rebeliões para que os mesmos pudessem ser livres?

    Carlos Ryan silva de Araujo

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    1. Caro Carlos, a escravidão em Goa não era como no Brasil. Em Goa era muito menor a parcela da população que tinha o estatuto de escravo. Em Goa não surgiu uma sociedade "escravocrata" como as que emergem nas que se desenvolvem as "plantations". Mas havia maus tratos, tanto que há várias leis para impedi-los, o que é um sinal de que era praticado. Viajantes europeus também mencionam esta prática. Sobre rebeliões em Goa, este era um tema que eu gostaria de conhecer melhor. Já encontrei alguns documentos e menção em alguns livros sobre fugas e repressão a escravos desobedientes, mas é um aspecto que ainda preciso pesquisar melhor.

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  21. Referente a religião, qual era o tipo de crença destes escravos?

    Carlos Ryan silva de Araujo

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    1. No conjunto de documentos que analisei, os escravos foram descritos como sendo principalmente muçulmanos. Mas havia escravizados provenientes de regiões onde o "hinduísmo" e o "budismo" eram predominantes. Lembro-me de um caso de um etíope de família judaica, que foi levado para Índia, converteu-se ao islã e ao cristianismo.

      Em todo caso, era obrigação dos proprietários portugueses encaminhar os escravos para o aprendizado da doutrina cristã, para que fossem batizados.

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  22. Patrícia, parabéns pelo trabalho.

    Seria correto afirmar que este tipo de escravidão é de forma incidental, ou seja, no caso das sociedades que possuem poucos escravos e não pautam sua economia através desse tipo de trabalho?

    Francisco Severo de Lima Junior

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    1. Caro Francisco, obrigada pela pergunta. No caso de várias destas sociedades, sim, pois a escravidão não era a relação de trabalho dominante. Se tiver curiosidade, o autor L. Thomaz analisou esta dinâmica de forma mais detalhada para o caso de Malaca (THOMAZ, L. A escravatura em Malaca no século XVI. Studia: Lisboa, no.53, 1994, p. 253-316). E há alguns considerações gerais sobre as formas de trabalho na Índia a partir de SUBRAHMANYAM, S.. Notas sobre a mão-de-obra na Índia pré-colonial (séculos XVI a XVIII)

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  23. Bom dia, Patrícia.

    Parabéns pelo texto, está com uma linguagem bem clara e acessível a todos tipos de leitores contendo informações interessantes muitas das quais eu desconhecia. A minha pergunta é sobre a sua fala sobre historiografia acerca da escravidão no IOW não ser muito privilegiada. Você atribui essa situação a qual(is) fator(es)??

    Desde já agradeço
    Carlos Roberto dos Santos

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    1. Caro Carlos, obrigada pela pergunta. Há vários estudos sobre a escravidão no IOW, mas que tendem a se concentrar em uma dimensão do tráfico: ou tratam do árabe-muçulmano; ou do praticado pelos franceses; ou pelos holandeses; ou ingleses. Assim, o que há em menos quantidade é a pesquisa que consiga conectar todas estas dimensões do tráfico no IOW, pois é muito difícil um pesquisador conseguir consultar todos os arquivos e documentos necessários para tratar de toda a dinâmica do IOW. Além das fontes documentais europeias, imagine o esforço de dominar as várias línguas nativas em que as poderiam ser encontradas referências à escravidão no IOW. Há autores que destacam a importância de tentar conectar estes estudos ( como MÉDARD, H.; no Livro __ ; DERAT, M. (org.). Traites et esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien. Paris: Karthala, 2013). O que gostaria de ressaltar é que temos menos estudos sobre a escravidão nas regiões sob influência portuguesa na Ásia, comparativamente às ares de influência britânica, holandesa, francesa. E isto talvez possa se explicar por várias razões: há mais estudos e interesse na dimensão mercantil, missionária e administrativa do império português no Oriente; como o império português na Ásia foi posteriormente se enfraquecendo, ao mesmo tempo em que ganhava a importância do império britânico ou holandês, a tendência é que a presença portuguesa tenha adquirido uma posição periférica nos estudos sobre os impérios europeus na Ásia.

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  24. Um outro ponto que gostaria de abordar é a respeito dos saberes e resistência dos escravizados. A historiografia mais recente sobre abolição e escravidão no Brasil já produz desde os anos 1980 trabalhos no sentido de posicionar o escravizado como sujeito histórico capaz de transigir, na medida do que era possível. Mesmo sendo a sociedade indiana formada por castas , essa historiografia existente mostra elementos de resistência dos cativos no oriente português?

    Desde já agradeço
    Carlos Roberto dos Santos

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    1. Para a Índia há estudos que tratam de escravos que se tornaram importantes líderes (como o africano Malik Ambar), além de pesquisas sobre o Siddis que viveram em Janjira. No caso do Oriente Português há poucos estudos sobre aspectos da trajetória de vida de alguns escravizados e forros nos séc. XVI e XVII, o que ajudaria a analisarmos mais esta dimensão da resistência ou agência dos escravizados. Tomo a liberdade de citar um estudo que escrevi, onde também encontrará referência a alguns estudos sobre a escravidão no Oriente PortuguÊs

      "Entre a cruz e o islã: escravos e forros diante da Inquisição de Goa"

      https://www.academia.edu/34070773/FARIA_Patricia_Souza_de._Entre_a_Cruz_e_o_Isl%C3%A3_escravos_e_forros_diante_da_Inquisi%C3%A7%C3%A3o_de_Goa_s%C3%A9c._XVI-XVII._In_MARTINS_William_HERMANN_Jacqueline._Poderes_do_sagrado_Europa_Cat%C3%B3lica_Am%C3%A9rica_Ib%C3%A9rica_%C3%81frica_e_Oriente_Portugueses_s%C3%A9culos_XVI-XVIII_._Rio_de_Janeiro_Multifoco_2016_p.383-406

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  25. Boa tarde.
    Excelente texto, bem detalhado.
    Só fiquei com algumas dúvidas sobre as castas indianas, se foi a partir das cartas de alforria que houve a divisão de castas ou se já existia essa separação antes?

    Erica de Araújo Lourenço Morais
    benjamimabnner1@gmail.com

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  26. Cara Érica, obrigada pela pergunta. O sistema de castas já existia antes da chegada dos portugueses. Na Índia, eram chamadas "varnas" (o que os portugueses passaram a chamar de "castas").

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