Introdução: história das ideias chinesas e protossociologia
Já existe um considerável debate sobre a possibilidade de afirmar
positivamente a existência de filosofia na história chinesa pré-moderna. No
presente texto, abstraindo das controversas sobre a questão, consideramos que é
tranquilamente possível falar em filosofias chinesas anteriores a criação do
conceito de Zhexue 哲學 como versão
chinesa da filosofia europeia no século XIX, desde que “filosofia” seja
entendida de uma maneira ampla como todo tipo de conhecimento humano consciente
e sistemático sobre a própria humanidade e o mundo em geral. No mesmo sentido,
teorias políticas ou filosofias sociais são facilmente percebidas na história
da filosofia chinesa, tendo várias escolas ou tradições como expoentes:
confucianos/ruístas, moístas, daoistas, legistas, da escola dos nomes, entre
outros.
Pretendemos ir além desses elementos já suficientemente conhecidos em
nossa consideração da história do conhecimento na China clássica, que abrange
desde a sua antiguidade até o fim do seu período imperial, mostrando a
possibilidade de ser apreciada uma protossociologia nessa cultura, a partir de
um caso particular. Entendemos por sociologia a ciência moderna nascida no
século XIX e desenvolvida até hoje em termos de métodos empíricos e teorias
próprias que tem como objeto os fatos sociais ou, entendido de outro modo, as
relações humanas intersubjetivas. Já a noção de “proto” indica algo ainda
seminal, em um estado anterior a plenitude do segundo elemento que possa compor
um tempo (protoestrela, protorrevolução, proto-história etc.). Dessa forma, uma
protossociologia seria a semente ou germe de uma futura sociologia.
Diversos pensadores foram considerados implícita ou explicitamente
como protossociológicos, desde gregos antigos como Xenophanes, Heródoto ou
Platão (D'Addario,
2018), passando por pensadores islâmicos como Ibn
Khaldun que viveu entre 1332 e 1406 da Era Comum (Mirhan, 2015) e até nomes da literatura europeia mais recente como Dostoievski,
Kafka ou Tolstoi (Köttig,
Völter, 2014). D'Addario (2018) chega a reconhecer que
“a maioria dos filósofos confucianos” teceram considerações que podem ser
consideradas de víeis sociológico, mas não fornece detalhes. A seguir, vamos
considerar as ideias de um desses confucianos, através de um recorte em suas
protoideias sociológicas. Para realizar isso nesse breve texto foi necessário
utilizar uma linguagem atual metodologicamente consciente para estabelecer uma
série de contrastes com ideias sociológicas bem aceitas atualmente, e assim
mostrar o peso das ideias bastante visionárias do autor tratado a seguir.
Xunzi 荀子 como autor
protossociológico
Xunzi 荀子, ou aportuguesadamente Mestre Xun, viveu no final do chamado período
chinês dos Reinos Combatentes, equivalente aos anos entre 313 e 238 Antes da
Era Comum (AEC). Ele é considerado um dos grandes nomes do início do
confucionismo, e o primeiro pensador mais sistemático dessa tradição, pois em
seu livro homônimo sua escrita é mais discursivamente lógica, sequencial e
argumentativa do que de seus antecessores confucianos. Apesar de não ter sido
promovido pelo poder imperial tal como Confúcio ou Mêncio (Jiang, 1999, p. 38),
suas ideias serviram de forte referência na China desde a primeira dinastia
histórica e durou por mais de um milênio (Cheng, 2008, p. 258-259). Passou a
ser menos lido e referenciado a partir da dinastia Song (960-1279 da Era Comum (EC)),
com o advento da tradição intelectual chamada de “neo confucionismo” ou mais
precisamente Estudo do Princípio (Lixue 理學), que deu
maior prestígio a outras referências confucianas. A seguir, vamos apresentar
algumas das várias ideias do Mestre Xun que sugerem um pensamento sociológico,
mesmo que em germe.
Na maioria das vezes em que este pensador é apresentado, é mostrada a
sua ideia de que a “natureza humana é baixa/má” (ren zhi xing e 人之性惡). Essa
afirmação foi feita em relação à sua controversa com outro importante
confuciano, aportuguesado como Mêncio (Mengzi 孟子, 380-289 AEC),
que dizia que a natureza humana é intrinsecamente boa, sendo que ambos buscavam
responder a questões políticas e filosóficas relevantes da sua época com bases
na tradição intelectual sintetizada por Confúcio (Kongfu zi 孔夫子, 551-479 AEC) – que não expressou uma
opinião explícita sobre natureza humana. Esse debate deve ser entendido dentro da
visão antiga da China, que não era essencialista. Mais especificamente, o
Mestre Xun via a natureza humana como moralmente neutra (Chong, 2008) e até em
termos biológicos (Cheng, 2008). E já nesse ponto pode ser percebida uma
semente de pensamento social em seus escritos:
“A natureza humana é má (xing e 性惡), o que nela há de bom é fabricado (wei 偽). Naquilo que a natureza humana tem de inato, há o amor ao lucro; se o homem segue esta tendência, aparecem cobiça e rivalidade, desaparecem deferência e modéstia. No inato, há ódio e inveja; se for seguida essa tendência, aparecem crime e infâmia, desaparecem lealdade e confiança. No inato, há os desejos dos ouvidos e dos olhos, há o gosto pela música e pelo sexo. Se for seguida essa tendência, aparecem excesso e desordem, desaparecem ritos (li 禮) e senso moral (yi義), cultura (wen 文) e estrutura (li 理). Se, portanto, dermos livre curso à natureza do homem (xing 性), se seguirmos a tendência das suas características intrínsecas (qing 情), não poderemos senão começar com a luta pelos bens, prosseguir no sentido contrário à sua justa repartição e à sua boa organização, e terminar na violência. É necessário, portanto, fazer intervir a transformação operada pelos mestres e pelas normas, bem como o Dao 道 dos ritos e do senso moral, para poder em seguida começar na deferência e na modéstia, ir no sentido da cultura e da estrutura, e terminar num Estado ordenado.” (Xunzi, 23, 1999b; Tradução de Cheng, 2008, p. 245, acrescentado os caracteres chineses)
Um primeiro ponto deve ser ressaltado: a natureza humana é entendida
como instintiva, sentir fome, sede e outras necessidades fisiológicas, próxima
do comportamento de animais selvagens, ao mesmo tempo em que comporta desejos
pessoais de obter benefícios/lucros e satisfazer emoções individuais. Assim, ele
está falando em termos de tendência, e não de uma essência do mal. Com isso
fica claro que há em todos os homens e mulheres a possibilidade da retidão
moral, já que a natureza humana é apenas “madeira bruta” a ser lapidada, como o
próprio Mestre Xun indica em outras passagens (Xunzi, 1 e 23, 1999ab).
Seguindo essa linha de raciocínio, este autor observa que é por meio
da educação, do agir ritualmente (li 禮) e do senso moral (yi義) que estes
instintos naturais (xing 性) egoístas são superados,
em prol de uma convivência harmônica em sociedade. Essa superação daquilo “que
não pode ser aprendido... que depende do Céu” (xing 性), se dá através de “muito trabalho..., é o que chamo de o
‘fabricado’” (Xunzi, 23, 1999b; Adaptação da tradução de Cheng, 2008, p. 246). E,
caso a moralidade ensinada via educação não seja suficiente para gerar uma boa
conduta nas pessoas, ele vê a necessidade do uso da força das leis para punir
comportamentos socialmente danosos. Em resumo, suas ideias partem do
pressuposto de que governo de uma sociedade ocorre através da moralidade
ensinada e das leis aplicadas.
Aqui já temos uma lição protossociológica, em nossa interpretação do
Mestre Xun: o ser humano, para se tornar humano, deve ser fabricado apesar da
sua natureza, deve ser conscientemente modificado, mas também é um ser
biológico que carrega consigo sua animalidade, ou desejos e emoções inatas,
sendo, então, ambas as coisas, biológico e moldado socialmente. É notável como
sua percepção do ser humano é próxima das atuais visões das ciências sociais.
Por um lado, nega que o ser humano é somente feito do que lhe é inato ou
biológico e dá importância para o peso que a cultura exerce nas pessoas. Por
outro lado, é consciente de que a humanidade não é somente “culturalmente
construída”, como se tendeu a afirmar com o culturalismo no início do século XX,
aceitando que, quando não há um esforço consciente e fabricado (wei 偽), todo humano pode ser muito mais animal do
que cultural. Surpreendentemente, estamos a tratar de um autor que antecede com
mais de dois mil anos esse debate das modernas ciências sociais.
Outra ideia do Mestre Xun que tem uma clara semente sociológica é sua
percepção sobre a importância da educação. Em relação ao que foi dito acima, este
autor acredita que é justamente através da aprendizagem guiada por professores
que é possível as pessoas de uma sociedade superarem seu egoísmo natural.
Destarte, a educação tem um peso muito forte em sua teoria política. Bem como
também é possível perceber pressupostos que consideramos de viés sociológico
que vão além de um posicionamento político, como no seguinte trecho: “Os filhos
dos povos Han, Yue, Yi e Mo, choram todos com o mesmo som ao nascer, mas quando
crescem eles têm costumes diferentes, porque a educação (教jiao) os faz assim” (Xunzi, 1, 1999a; nossa tradução a partir das
traduções disponíveis).
Como pode ser notado no trecho acima, para além da mera percepção da
existência de costumes diferentes, algo igualmente registrado por outros
autores da antiguidade em vários contextos, Mestre Xun também aponta a causa
dessa diferenciação: seus costumes são ensinados, cada um ao modo do seu
próprio povo. Ou seja, há uma clara percepção de que a cultura de cada um dos
diversos povos se desenvolve diferentemente devido ao fato de existirem
costumes distintos e formas singulares de ensinar tais hábitos. Bueno (2011) comentou
a visão do Mestre Xun sobre a natureza humana e a percepção desse pensador
chinês de que os humanos, mesmo com tais limitações, acabaram criando formas de
assegurar uma convivência com justiça em sociedade, e apontou uma interpretação
no mesmo sentido do que argumentamos: “Xunzi entendia ser isso um Saber social (Cultura), ou seja, um
sistema de reprodução da sociedade que disciplinava seu modo de vida,
vinculada, fundamentalmente, a questão da educação, que seria a transmissão
desta estrutura entre gerações” (Bueno, 2011, p. 39).
Para o Mestre Xun, então, é justamente a educação que propicia que
uma sociedade seja sociedade, e não somente um aglomerado de indivíduos egoístas
tentando tirar vantagens uns dos outros. Mais importante, a educação é um
instrumento para a preservação de uma ordem harmônica de uma sociedade. Não só
instrumento de coesão e continuidade social, a educação (教jiao), se realizada através de um constante e diligente esforço de
aprendizagem (xue學), é um dos caminhos para que uma pessoa possa alcançar o estado de
realização de sábio (sheng 聖) tão almejado pela tradição confuciana.
O sábio, em especial os
soberanos da antiguidade chinesa, modelos de comportamento por excelência do
ponto de vista desse coletivo de pensamento, seria também os próprios criadores
do agir ritualmente e do senso moral, para o Mestre Xun (Cheng, 2008, p. 249). Eles
assim o fizeram de maneira fabricada, por um esforço consciente, e não por um
agir conforme seus desejos naturais. Dessa forma, a moralidade é fruto de uma
ação própria do aprendizado, e não mera expressão de um desejo inato. A
moralidade é algo a ser ensinado e a ser aprendido. Logo, é uma construção
social, em nossa atual visão.
A moralidade ou senso
moral é vista por pelo nosso autor (Xunzi, 9, 1999a) como o motivo para as
partilhas sociais de recursos serem eficazes, e, assim, os desejos biológicos
são saciados. Somente utilizando do princípio da partilha é que é possível
haver sociedade de maneira harmônica, para Mestre Xun. É através desse
princípio que surgem divisões sociais que ordenam o funcionamento das
sociedades. Logo, havendo moralidade para gerir as divisões sociais, e essas
últimas operando em prol das próprias sociedades, os seres humanos podem viver
socialmente tranquilos e até aumentar o seu poder em relação ao mundo em que
vivem.
Sem moralidade, no
entanto, as sociedades podem não funcionar bem: “Se permanecermos separados sem
dependência mútua, vivemos na pobreza; mas se vivermos em sociedade sem
princípio de partilha, combatemos[-nos] entre nós para nossa sobrevivência”
(Xunzi, 10, 1999a; tradução de Cheng, 2008, p. 252). Novamente é perceptível a
proximidade com tradições sociológicas atuais, em especial, da escola
durkheimiana.
Émile Durkheim é
conhecido pela tese da necessidade de solidariedade social para que não haja
uma situação de ausência de sentido e até de regras numa sociedade. Bem como
Durkheim deixou como forte legado sociológico a noção de divisão social do
trabalho, e a importância que isso tem no que chamou sociedades complexas. Certamente
o contexto do Mestre Xun não pode ser classificado como “sociedade complexa”
(seria até anacrônico). No entanto, é instigante notar que em uma conjuntura
social que antecede mais de dois milênios aos clássicos da moderna sociologia,
nosso autor clássico chinês já tinha clara a conexão entre a divisão de
trabalho, uma economia que gerasse relações entre essas divisões e a
necessidade de uma moralidade que unisse as pessoas que protagonizam essas
relações sociais para que uma sociedade funcionasse de maneira harmônica.
Muitos outros exemplos
podem ser explorados a partir da obra do Mestre Xun, mas acreditamos que os
tópicos trabalhados nesse breve tópico são suficientes para, pelo menos,
apontar para os aspectos protossociológicos desse pensador.
Uma sociologia confuciana?
Existe autores que consideram haver uma teoria social na obra do
Mestre Xun, tendo em vista, em especial, suas teorias sobre os ritos. Na
leitura xunziana de Berkson (2016), os ritos são vistos como transformadores do
agir humano, tendo uma função simbólica para a cultura. Para esse comentador, as
visões do Mestre Xun sobre os ritos teriam proximidades com autores como
Sigmund Freud e Robert Bellah. No entanto, ele se difere desses autores
modernos por ter uma perspectiva também interna do ritual em sua teoria, ou
seja, sua teoria sobre ritual implica uma prática ritual (Berkson, 2016).
Robert Campany (1996) escreveu um pioneiro texto em que compara
diretamente as teorias sobre ritos de Durkheim e do Mestre Xun. Ambos têm em
comum, por exemplo, a percepção de que ritos cumprem uma função simbólica
indireta, para além da ação propriamente dita. Uma diferença apontada é a
vantagem do autor chinês de não pressupor uma dicotomia entre teoria e ação,
algo presente nos escritos de Durkheim como um legado da filosofia kantiana.
Por outro lado, o sociólogo francês escreveu sua teoria como um veículo para
analisar outros povos diferentes do dele, enquanto o Mestre Xun escrevia tendo
como base os ritos do seu povo, somente apontando a existência dos ritos de
outros povos.
Somando tudo que foi dito anteriormente, entendemos que o Mestre Xun
apresenta, claramente, um conjunto de teorias sociais fundamentados na
filosofia confuciana e com empréstimos de outras tradições chinesas, como é
sabido (moístas e legistas, sobretudo). No entanto, suas teorias são, num
primeiro olhar, acopladas ao seu posicionamento político. Nosso principal argumento
para que se veja uma protossociologia nesse autor é que, além de um
posicionamento político ou filosófico, o Mestre Xun, na trilha de toda uma
tradição intelectual confuciana, apresenta em seu discurso uma teoria social de
fundo que permeia toda sua obra. Em outras palavras: a construção dos
argumentos em seus discursos de viés intencionalmente políticos é fundamentada
em teorias o aspecto social da humanidade que não necessariamente precisa
acompanhar sua aplicação política.
Com esse argumento queremos mostrar que a partir das teorias
protossociológicas dos autores confucianos, de que o Mestre Xun é um exemplo bastante
claro, é possível desenvolver uma sociologia aos moldes modernos. Ou seja, é
possível beber na fonte de conhecimentos da antiga tradição confuciana para
realizar estudos sociais que respeitem noções atuais de pesquisa sociológica,
como: a isenção de julgamentos de valor, a explicações/interpretações de ações
sociais a partir dos próprios humanos (ignorando visões metafísicas), e até mesmo
utilizar técnicas de pesquisa empírica.
Como apontado por Campany (1996, p. 99), a teoria desse autor chinês,
por ser construída com outras bases, não carrega certos vícios de raciocínio
dualísticos que a filosofia europeia legou à moderna sociologia, o que dá
vantagem a uma sociologia confuciana. De maneira mais convidativa ainda, Berkson
(2016, p. 263) incita a leitores atuais do Mestre Xun a utilizar partes
transculturais e trans-históricas das suas teorias e aplicarem em suas vidas. E
aqui deixo o meu convite intercultural: utilizar o pensamento confuciano como
base para produzir estudos sociais nas universidades atuais. Então, mais do que
estudar as sociedades chinesas, que já é relevante, poderíamos estudar temas
sociais tendo teorias chinesas como fundamento, o que seria um verdadeiro
exercício intelectual antropofágico, necessário para uma relação mais profícua
e mais profunda com o legado intelectual chinês.
Referências
Matheus Oliva da Costa é
cientista das religiões com Licenciatura Plena pela UNIMONTES, mestre e
doutorando em Ciência da Religião pela PUC-SP, Bolsista da Capes;
Email:
matheusskt@hotmail.com
BERKSON, Mark. Xunzi
as a Theorist and Defender of Ritual. In Dao
Companion to the Philosophy of Xunzi. Springer,
Dordrecht, 2016. p. 229-267.
BUENO, André. Sobre a Real Natureza Humana. In BUENO, André. Dez Lições de Filosofia Chinesa. São Paulo: Agbook, 2011, p. 35-40.
CAMPANY, Robert.
Xunzi and Durkheim as theorists of ritual practice. In GRIMES, Ronald L. (Ed.).
Readings in ritual studies. Upper
Saddle River, NJ: Prentice Hall, 1996, p. 87-103.
CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Tradução
Gentil Evelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CHONG, Kim-chong.
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D'ADDARIO, Miguel. Sociologia Evolucionista: Estudo,
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KÖTTIG, Michaela; VÖLTER,
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XUNZI. Xunzi (v.
2). Translated into English by John Knoblock, translated into Modern Chinese by
Zhang Jue. Changsha/Beijing: Hunan People's Publishing House/Foreign Languages
Press, 1999b.
Oi Matheus!
ResponderExcluirGostei muito do seu texto, e já venho pensando nisso também... não será necessário reconceituar algumas interpretações que temos do pensamento chinês? A própria ideia de Li, por exemplo: ela foi usualmente traduzida como 'rito', mas os primeiros tradutores [Mafezolli, Couvreur, Legge] eram todos religiosos. Examinando com cuidado, penso que Li poderia ser entendido como 'Cultura', ou 'práticas sociais'. Xunzi, como um sociólogo, não estaria se detendo sobre isso?
grande abraço!
Obrigado pela pergunta, André!
ExcluirRealmente grande parte dos primeiros tradutores da tradição dos Ru para línguas neolatinas eram missionários cristãos europeus, e isso teve impacto nas suas escolhas. Por outro lado, a tradição antropológica acadêmica e laica também utiliza o termo "rito/ritual", mas ressiginificado. Ou seja, transformado em um conceito acadêmico, para além do uso cotidiano (que, no caso dos missionários, também era um termo religioso). Disso, acredito que sim, Li 礼 (trad. 禮) pode ser traduzido como "práticas sociais" no que concerne à obra Xunzi. Pode também ser "comportamento social" ou "ação cultural". No entanto, acredito que o termo "rito" ou simplesmente "prática" é uma possibilidade ainda válida de tradução de Li 禮, contanto que se explique o significado.
Entrando na segunda questão: sim, também interpreto que, vendo o texto/autor Xunzi como um pensador social, quando ele fala de Li 禮 está se remetendo a uma realidade social. Nas minhas leituras, vários autores interpretam nesse sentido, e por isso também aposto em defender que Xunzi era um autor protossociológico que apresenta fortes bases para realizarmos, hoje, uma sociologia a partir dele.
Abraços
Olá Matheus, boa noite!!
ResponderExcluirGostei muito do seu texto. Estou me aproximando da teoria chinesa e gostaria muito de me fundamentar no pensamento chinês, exatamente para dialogar com os estudos sociais. Tenho estudado a desconstrução das relações humanas e vínculos de solidariedade, como um modelo de gestão contemporânea do trabalho. Você teria alguma sugestão de leitura introdutória para uma pessoa leiga na teoria/filosofia chinesa? Abraços, Marisa
Boa noite, Marisa.
ExcluirObrigado pela pergunta.
Depende da sua aproximação atual com o pensamento chinês. Levando em conta minha discussão, segue obras que julgo bem introdutórias, mas mesmo assim profundas:
CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Tradução Gentil Evelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
Um brasileiro que considero pioneiro e bem didático na forma como explica o mundo chinês é o André Bueno, que também organiza este evento aqui. Como ele tem muitas publicações e textos, sugiro começar, como eu fiz, pelo blog dele:
http://orientalismo.blogspot.com/
Especialmente essa parte, para iniciantes: http://orientika.blogspot.com/
Após se sentir satisfeita com algumas introduções, indico conhecer as obras clássicas do pensamento chinês: Analectos (de Confúcio), Daodejing (de Laozi), Mozi, Hanfeizi, entre outros.
Por outro lado, lembro que já existe uma tradição sociológica chinesa desde o século XX. Para conhece-la, indico procurar a Rosana Pinheiro-Machado, que já começa a citar sociólogos chineses e fez um curso desse tema na UNICAMP recentemente.
Espero ter ajudado. Seguimos em diálogo.
Abraços
Boa noite Matheus! Muito obrigada pelas dicas. Ajudou bastante.. O Prof. André Bueno também me foi indicado por outra pesquisadora, motivo pelo qual cheguei aqui no seminário. Certamente irei me aproximar de seus estudos. Muito obrigada!! Abraços.
ExcluirCaro Matheus,
ResponderExcluirComo se dá a leitura de Xúncio nos dias atuais? Ouvimos sobre Confúcio, mas não sobre ele. Ele ainda é utilizado?
obrigado,
Mário Dallagnol
Boa noite, Márcio!
ExcluirObrigado pela questão. Reponsta: Depende.
Em manuais sobre pensamento chinês, especialmente sobre o período antigo (pré-Han), Xunzi é lembrado, e, às vezes, tratado como 3º maior confuciano depois de Confúcio e Mêncio. Veja, por exemplo, o livro citado da Anne Cheng, o livro da Karyn Lai (Introdução a Filosofia Chinesa) ou o clássico do Marcel Granet (O Pensamento chinês).
Por outro lado, desde a dinastia Song (960-1279 E.C.) a visão de Mengzi (Mêncio) ganhou mais prestígio, o que levou muitas vezes ao apagamento historico de Xunzi.
Na virada do século XX para o XXI temos um novo interesse crescente neste autor, ainda que tímido em relação a outros autores chineses, em duas frentes:
(1) acadêmicos que estudam filosofia chinesa - ver, por exemplo, o "Dao Companion to the Philosophy of Xunzi", de 2016, e números especiais de revistas sobre ele;
(2) o chamado "novo confucionismo" nascido nas últimas décadas na China, tem um dos seus principais autores, o Jiang Qing, e ele declara que seu "confucionismo político" descende diretamente de Xunzi, e recebeu influências diretas dele (sobre isso, ver: BELL, Daniel. Introduction. In: JIANG, Qing. A Confucian Constitutional Order: How China’s Ancient Past Can Shape Its Political Future. Edited by Daniel A. Bell and Ruiping Fan. Translated by Edmund Ryden. Princeton, NJ: Princeton University Press, p. 5 e 18, 2013.)
Foi demonstrado o papel da educação no âmbito da moralidade e como sendo importante para que se desenvolva a noção de dever nos homens, mas com relação à ética, onde esta se situa com relação ao papel da educação?
ResponderExcluirBoa noite, Arthur!
ExcluirObrigado pela pergunta. "... com relação à ética, onde esta se situa com relação ao papel da educação?"
Aqui temos que esclarecer um aspecto etimológico: moral, em latim, é uma possibilidade de tradução do termo grego "ethica", significando, ambos, "comportamentos/costumes". Tenho clareza que na filosofia europeia moderna e contemporânea desenvolveu-se uma forte distinção entre ética e moral ao longo de séculos, culminando em autores como Adolfo Vázquez, que acreditam ser moral e ética coisas bem distintas.
A tradição intelectual chinesa não criou uma distinção nesse sentido, até onde vai meu conhecimento. Dessa forma, "ética" e "moral" podem ser vistas em Xunzi como sinônimo do termo "Li 礼/禮", como pensado por André Bueno na sua pergunta acima. No entanto, lembro que Li 禮 tem sua especificidade conceitual, assim como os termos ética e moral, e o que fiz agora são só aproximações.
Em poucas palavras: a educação, para Xunzi, é tão importante no que chamamos hoje de "moralidade" quanto para o que chamamos hoje de ética. Ambas são aprendidas por meio de um "esforço consciente", são fabricadas culturalmente.
Obrigado à todos que participaram pelos diálogos. Até a próxima!
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