Rômulo Ehalt

GÂNDAVO NA CHINA, ÍNDIOS NO JAPÃO: A LEITURA DE UM CONFUCIONISTA JAPONÊS SOBRE A COLONIZAÇÃO DO BRASIL (S. XVII E XVIII)

Mapas e imagens de casais representando diversas nações foram temas populares em impressos seiscentistas japoneses. No começo do século XVIII, com base em textos jesuítas e outros, o astrônomo Nishikawa Joken reinterpretou o processo de transformação dos indígenas brasileiros, de canibais a“povo civilizado”, através da reformulação da ideia da ausência de valores, originalmente defendida na obra de Pero de Magalhães Gândavo. O presente trabalho visa mostrar como um confucionista japonês do século XVIII usou descrições sobre a colônia portuguesa e a experiência histórica do próprio Japão durante seu contato com europeus para entender o processo de colonização do Brasil.

Introdução
Durante os séculos XVI e XVII, os contatos entre europeus e japoneses levaram a um longo processo de expansão dos horizontes científicos e geográficos no Japão.Durante o período Edo, dados obtidos através dos contatos com o exterior foram reinterpretados à luz do confucionismo.Um dos pioneiros dos estudos sobre o Ocidente no Japão, o astrônomo Nishikawa Joken, foi o primeiro japonês a publicar obras sobre outros países. Num período de controle rigoroso de livros importados, Nishikawa deu ao público japonês a oportunidade de aprender mais sobre o exterior.

Nas suas obras, as descrições do Brasil chamam a atenção. Nishikawa dedicou curtas passagens à colônia portuguesa em dois trabalhos: Zōho Kai Tsūshōkō増補華夷通商考[Edição Ampliada das Considerações sobre o Comércio entre Povos Civilizados e Bárbaros], de 1708, e Shijūni Koku Jinbutsu Zusetsu四十二国人物図説 [Explicações dos Povos de 42 Nações], de 1720. O presente trabalho visa analisar as descrições de Jokene esclarecer sua leitura a respeito do processo histórico envolvendo os indígenas brasileiros.

Imagens de indígenas brasileiros no Japão
Representações gráficas de indígenas americanos nus portando arcos e flechas começaram a aparecer no Japão no final do século XVI. Uma das mais antigas destas imagens aparece no biombo Nijūhachi Toshi Bankoku Ezu Byōbu二十八都市万国絵図屏風[Biombo de Imagens de Países do Mundo e Vinte e Oito Cidades], atualmente preservado no arquivo da Agência da Casa Imperial do Japão. A peça apresenta 42 retratos de casais representando diferentes nações – um reflexo da influência da cartografia europeia, onde corpos humanos abundavam: “particularmente em mapas múndi, continentais e de países, existem simplesmente mais corpos ocupando o espaço” (TRAUB, 2000).No Japão, estes casais ilustravam biombos, particularmente populares nas primeiras décadas do século XVII eque se originaram em sua maioria de mapas holandeses (MOCHIZUKI, 2009).

Em meados do século XVII, as ilustrações de casais adornam impressos de produção mais barata, tornando-se extremamente populares. Estes incluíam publicações como Bankoku Sōzu万国総図[Mapa de Todos os Países do Mundo] , Sekai Jinbutsu Zu世界人物図 [Povos do Mundo], entre outros.

Até este momento, casais indígenas apareciam representando o continente americano em geral. Por volta da segunda metade do século,surgem notas explicativas para alguns dos pares, e os indígenas são logo associadosao Brasil. O chamado Sekai Jinbutsu Emaki世界人物図巻 [Rolo de Imagens dos Povos do Mundo]mostra um casal indígena claramente identificado como Burajiru-jin伯剌西爾人, ou “brasileiros”.O casal, ele seminu e ela vestida com um colete vermelho, é acompanhado pela seguinte descrição:

伯剌西爾ハ南亜墨利加ノ東辺ニ在テ熱国ナリ人倫ノ作法ニアラズ奸勇ニシテ人ヲ殺シ炙リ食フト云今ノ代ハ諸国ノ人往来シテ交易スル事多故少人倫の作法ヲ知ル
[O Brasil é um país quente na porção leste da América do Sul. Como é um país onde não há moral, é considerado honroso matar, assar e comer pessoas. Mas agora que pessoas de diversos países vêm com frequência para comerciar, eles aprenderam um pouco de moral.]

Os brasileiros aparecemnão como seres estáticosde uma geografia fantástica, mas como participantes de uma história dinâmica. São protagonistas na transformação de suas relações com o mundo exterior,modificando ao final como se relacionam entre si.As relações comerciais são tidas como responsáveis pelo aprendizado de um senso de moral humana até então considerado inexistente na região. O resultado foi uma mudança nos relacionamentos, apesar de ser uma transformação limitada.

O senso de moral é indicado pelo termo jinrin人倫, um conceito fundamental do confucionismo. Jinrin, ou rénlún em chinês, representa o conceito chinês de moral, que resume os diferentes tipos de relações humanas e as obrigações morais resultantes destas relações (YU, 2015). No Japão Tokugawa, esta noção se tornou gradualmente relevante à medida que o confucionismo foi adotadocomo ideologia de estado.

Podemos traduzir o termo como moral, moral humana ou senso de moral. A explicação do Sekai Jinbutsu Emaki, de que a falta desta moral permitiria o aparecimento do canibalismo, era uma explicação confucionista para o processo de colonização dos indígenas. Apesar da dificuldade de se datar o impresso, a análise dos escritos de NishikawaJoken e sua popularidade no período nos levam a crer que o astrônomo foi o responsável por disseminaresta noção no Japão.

Gândavo na China
A ideia de que aspectos linguísticos seriam indícios da ausência de valores entre os indígenas brasileiros não é original dos japoneses.  José de Acosta, autor de uma das mais influentes taxonomias raciais da idade moderna, elaborou sua hierarquia da humanidade com base nas faculdades intelectuais – rectaratio– e nas formas de associação entre indivíduos de uma mesma sociedade. Estas relações eram explicadas com base na tríade mores, ritus e leges. Não é à toa que na base da hierarquia racial de Acosta estavam os indígenas antropófagos, descritos como selvagens sem lei, nem rei, sem magistrados ou governo (MARCOCCI, 2011). Antes de Acosta, Pêro de Magalhães Gândavo registrara em 1573 ideia semelhante:como os indígenas brasileiros não tinham em seu idioma as letras F, L e R, por conseguinte não teriam fé, lei ou rei. A ideia foi incluída por Giovanni Pietro Maffei em seus trabalhos, popularizando assim a ideia na Europa (ALCIDES, 2009).

No leste asiático, os brasileiros chegam como canibais. Em 1602, Matteo Ricci deu ao imperador Mingum mapa-múndi coberto com anotações em chinês sobre os povos e a geografia do mundo. Sobre o Brasil, Ricci escreve que os indígenas brasileiros eram comedores de gente, mas que não devorariam mulheres, somente homens.

Seminaristas japoneses tinham outra fonte de informações sobre o Brasil: o diálogo dos embaixadores japoneses de 1590. Impresso em Macau, o texto apresentava um diálogo imaginário entre os quatro japoneses que visitaram a Europa e dois conterrâneos que não haviam deixado o arquipélago. O texto foi elaborado para uso por seminaristas, e menciona missionários jesuítas no Brasil, a exportação de açúcar brasileiro em massa para Portugal e outras regiões, além de localizar o Brasil no mapa mental construído para os estudantes dizendo que o país “pertencia à América” (MASSARELLA e MORAN, 2012).Desta forma, o texto tentou disseminar a ideia de que o Brasil, bem como outras regiões do mundo, estaria sendo transformado pelos jesuítas.

Mas será somente no final do século XVII que os japoneses começarão a desenvolver ideias próprias a respeito dos brasileiros. O pioneiro foi NishikawaJoken.Um primeirosjaponeses a coletar informações sobre o exterior no final do século XVII e no começo do século XVIII (SHIGEMATSU, 1993), Joken publicou em 1708 o Zōho Kai Tsūshōkō,uma revisão do seu primeiro compêndio de informações sobre o mundo publicado anteriormente em 1695. A principal fonte parece ter sido o ZhífāngWàijǐ職方外記[Crônica de Terras Estrangeiras], produzida por missionários jesuítas na China e publicada pela primeira vez em 1623 (ISHIZAKI, 2012).

O ZhífāngWàijǐfoi escrito pelo jesuíta italiano Giulio Alenie o cristão chinês YángTíngyún杨廷筠, massua importação foi proibida no Japão dos Tokugawa (KANAI, 1926). No quarto volume, Alenie Yángdescrevem a natureza do Brasil, o Rio Amazonas, animais como o bicho-preguiça, a onça e outros. Ao descrever costumes indígenas, o texto diz:

素無君長書籍、亦無衣冠、散居聚落、喜啖人肉。西土常言其地缺三字王法文是也。今已稍稍歸化、頗成人理。(ALENI e YÁNG, 1623)
[Anteriormente, [os brasileiros] não tinham rei ou livros, nem roupas ou chapéus, e viviam espalhados em suas vilas, e gostavam de comer carne humana.Os ocidentais sempre dizem que eles não têm três letras: rei, lei e escrita, e é assim mesmo.Mas agora eles [os brasileiros] estão aos poucos internalizando de forma suficiente a moral humana]

A afirmação sobre a falta de certos valores entre os indígenas brasileiros era uma clara referência a Gândavo. No entanto, a estrutura do raciocínio original de Gândavo e a sua tradução para o chinês são diferentes. Para a cultura letrada europeia, o autor português precisou demonstrar a ausência das consoantes R, L e F para daí inferir a falta das instituições sociais. No caso de Aleni e Yáng,eles usam a escrita chinês para, de uma só vez, indicar que a ausência entre os brasileiros dos ideogramas significava a falta das referidas instituições sociais.

Contudo, a tríade original de Gândavo, fé, lei e rei, é diferente daquela apresentada no Zhífāng Wàijǐ, i. e., rei, lei e escrita. Em um comentário à tradução japonesa, Saitō Masataka entende que rei e lei são traduzidos literalmente, mas a substituição de fé por escrita no texto chinês teria como objetivo evitar analogias entre o Brasil e a China (SAITŌ, 2017, 235). Entretanto, é preciso ter cuidado na análise desta transposição de conceitos.

Na era moderna, a religião cristã era conhecida por seu opositores no Extremo Oriente como 邪法: jahōem japonês ou xiéfǎ em chinês, significando literalmente caminho ou normas distorcidas ou malignas. O ideograma 法 (hō / fǎ) não se refere ao termo lei, como no japonês ou chinês atuais, mas seu significado neste contexto seria mais próximo de fé. Portanto, Aleni e Yáng traduzem a fé de Gândavo como 法, o rei como 王, e a lei como 文, dado o direito representar, neste sentido, a cultura letrada secular de uma sociedade.

Aleni e Yáng são a principal fonte de informações de Nishikawa ao descrever as diversas partes do mundo. Em seu Zōho Kai Tsūshōkō, Nishikawa incluium mapa-múndi mostrando o Brasil como “terra de canibais” (食人国)e descreve o país como um lugar onde indígenas andavam quase sempre nus e as mulheres tinham seus cabelos desarrumados. A simetria entre o texto de Nishikawa e a descrição do Brasil doZhífāngWàijǐé clara. Em um certo ponto, Nishikawa relata que os indígenas não eram governados por um monarca e não dispunham de escrita: 国主ナク文字ナシ [não têm rei, nem letras]. A seguir, menciona que os brasileiros eram canibais:好ンで人ノ肉ヲ喰フ [comem carne de humanos com prazer] (NISHIKAWA, 1708).A descrição é uma tradução parcial da passagem de Aleni e Yáng, onde os dois dizem que “Anteriormente, [os brasileiros] não tinham rei ou livros, (...) e gostavam de comer carne humana.”Ao que parece, Nishikawa suprimiu a idéia da ausência como apresentada por Gândavo. Mas ainda que a tríade fé-lei-rei não tenha sido traduzida para o japonês em 1708, a ideia influenciou a leitura de Nishikawa sobre o Brasil.

Uma visão confucionista da colonização
Doze anos depois do Zōho Kai Tsūshōkō, Nishikawa reformula a descrição dos brasileiros, reiterando sua dinâmica histórica. Neste período, Nishikawa deduziu que o que faltara aos indígenas brasileiros e que então estariam aprendendo aos poucos era um senso de moral nas relações humanas. Em 1720, publica o Shijūni Koku Jinbutsu Zusetsu, obra em dois volumes detalhando características de diversas nações estrangeiras. Ao falar sobre o Brasil, Nishikawa escreve:

伯剌西爾は南亜墨利加の東辺に在て𤍠国なり人倫の作法にあらす奸勇にして人を殺し炙り食ふという今代は諸国の人往来し交易する事多き故に少く人倫の作法を知り人を食する事なしといへり(NISHIKAWA, 1720)
[O Brasil é um país quente que fica na porção leste da América do Sul. Como eles não têm moral, consideram ser honroso matar, assar e comer pessoas. Mas agora que pessoas de diversos países vêm com frequência para comerciar, eles aprenderam um pouco de moral, e dizem que eles não comem mais pessoas.]

Comparando-se com o Zōho Kai Tsūshōkō, o ShijūniKokuJinbutsuZusetsu apresenta umadinâmica histórica que ecoaria nos impressos populares, como o Sekai Jinbutsu Emaki. Não há referência à tríade de Gândavo, e o tom descritivo do livro de 1708 é substituído por uma síntese do processo colonizador.

A relação causal entre a falta de moral e o canibalismo remete à descrição do ZhífāngWàijǐ, que caracteriza os indígenas como povo sem rei, sem cultura escrita, sem roupas, desorganizado e antropófago. Sobre os indígenas, o ZhífāngWàijǐ registra:“(...) agora eles estão aos poucos internalizando de forma suficiente a moral humana”. Ao que parece, o texto dos jesuítas estaria fazendo referência à conversão dos índios.

Todavia, a obra de Nishikawa é reconhecidamente seletiva, excluindo elementos ligados ao cristianismo nas suas fontes. Diversas menções à religião são omitidas, e a inclusão de informações geográficas que não aparecem na obra de Aleni e Yáng mostra que o estudioso teve acesso a outras fontes para além do ZhífāngWàijǐ (TANIUCHI, 2018).

A internalização da moral descrita pelo ZhífāngWàijǐé centralpara a tese de Nishikawa sobre a transformação dos brasileiros. O termo chinês rénlĭ人理é substituído pelo japonêsjinrin人倫 no texto do japonês. Conceito fundamental, o termo refere-se às cinco “morais” das relações humanas, a saber: o amor filial, a obediência entre senhores e subordinados, a relação entre casais, o respeito à hierarquia da senioridade e a confiança entre amigos (TAKASHIMA, 2009).

Segundo Arano Yasunori, a ideia de civilização de Nishikawa foi profundamente afetada pela história do leste asiático no século XVII. A mudança da dinastia Ming para a dinastia Qing na China, em meados do século XVII, foi um momento traumático para toda a região. Quando os Ming, representantes da civilização chinesa ou huá華, são substituídos pelos Qing, até então considerados povos bárbaros ou yí夷, percebe-se que ser civilizado não dependia de localização geográfica, mas sim das relações humanas e a moral que as regia, ou seja, jinrin / rénlún. Esta observação já aparece no apêndice do Zhífāng Wàijǐ, mas enquanto os jesuítas se referiam provavelmente ao processo de conversão religiosa, Nishikawa vê essa transformação a partir da experiência da mudança de dinastias na China (ARANO, 1994; TANIUCHI, 2018).

Esta lógica é a que permite a leitura feita por Nishikawa sobre os brasileiros. Aleni e Yáng descrevem a ausência de práticas e instituições sociais em paralelo com o canibalismo e a transformação relativamente recente dos índios brasileiros. Contudo, Nishikawa entende a existência de uma relação causal entre as práticas sociais e a antropofagia. Para o astrônomo japonês, toda a descrição do Brasil feita no ZhífāngWàijǐ serve apenas para indicar a ausência da própria moral humana, jinrin. Afinal, para ele, este era o fator que diferenciava a barbárie da civilização na visão de mundo chinesa. É a partir desta constatação que ele formula sua própria descrição dos indígenas e do processo histórico de transformação e civilização deles.

Para Nishikawa, o comércio seria a força responsável pelo processo civilizacional dos indígenas. O contato com outros povos torna-se então o fator central no desencadeamento deste processo. Ao que parece, esta constatação pode estar relacionada a um processo de reflexão sobre a própria história dos contatos entre o Japão e o ocidente. Nishikawa sabia que o arquipélago havia passado por um processo radical de mudança durante o período de intensos contatos com portugueses, holandeses e outros antes das políticas isolacionistas dos Tokugawa. Ele certamente sabia também do peso que o cristianismo teve neste processo, e dado o clima de perseguição aos cristãos e sua aparente disposição em apagar qualquer resquício da religião da sua descrição do mundo, Nishikawa reinterpreta o processo de transformação do Brasil não como resultado da evangelização, mas sim como um conjunto de influências e descobertas feitas pelos próprios indígenas no seu contato com outros povos, relações fundamentalmente centradas no comércio. Portanto, Nishikawa indica o comércio como agente civilizador e os indígenas como um povo cujos valores surgem de dentro para fora durante este processo, e não através de uma imposição de valores importados como seria em uma narrativa da evangelização.

O canibalismo assume então, nesta fórmula, um papel central, como evidência do processo civilizacional dos indígenas brasileiros. Enquanto Aleni e Yángdeixam de fora qualquer relação direta de causa e consequência entre a ausência de instituições sociais e a prática da antropofagia, Nishikawa reorganiza os elementos. A fórmula passa, na pena do astrônomo, a consistir no canibalismo como prática resultante da inexistência da moral humana e, em um segundo momento, a prática é suprimida devido ao aprendizado destes valores. Neste sentido, trata-se de uma releitura confucionista da ideia básica de Gândavo, da ausência de valores entre os indígenas brasileiros, e da própria evangelização dos missionários jesuítas.

A imagem que acompanha o texto de NishikawaJoken no seu livro de 1720 é um reflexo deste processo. Até aqui, todas as representações dos brasileiros os mostravam como indígenas seminus e bárbaros. No entanto, o par apresentado por Nishikawa é um casal vestido com uma criança sentada nua no chão. Todos estão descalços, e o homem segura um facão. A mulher tem um seio à mostra, enquanto a criança senta-se no chão com a mão estendida.

Calvi também nota esta diferença na forma como os brasileiros são retratados em Nishikawa, mostrando o processo civilizatório tanto dos indígenas brasileiros quanto dos africanos é mostrado como resultado da influência europeia (CALVI, 2017). Todavia, o processo civilizatório dos brasileiros nos parece incompleto: a criança está nua, a mulher tem um seio à mostra e todos estão descalços. A rusticidade latente dos brasileiros fica ainda óbvia com a forma como Nishikawa qualifica o aprendizado dos brasileiros: “(...) eles aprenderam um pouco de moral (...)”.

Em 1720, ano da publicação do ShijūniKokuJinbutsuZusetsu, o governo Tokugawa aliviou a proibição imposta até então contra a venda de livros estrangeiros, permitindo a venda de obras que não contivessem conteúdo considerado religioso. O ZhífāngWàijǐseria finalmente liberado em 1731, ainda que uma nova edição não tivesse sido aprovada e sua circulação tenha ficado aparentemente restrita a manuscritos (MATSUDA, 2000).

Conclusão
As descrições dos indígenas brasileiros na arte japonesa deste período surgem em meados do século XVII e são inseridas em uma visão de mundo confucionista. Inicialmente vistos como antropófagos, os indígenas são apontados como tendo se transformado graças aos contatos estabelecidos com outros povos. A explicação remete a um processo de reflexão sobre o modo como os japoneses viam as transformações ocorridas no arquipélago desde o seu contato com os europeus, diminuindo o papel da religião e exaltando o comércio como estopim inicial de mudanças internas.

Na visão de Nishikawa, a transformação dos brasileiros não é imposta, mas trata-se sim de um processo interno, cujo pontapé inicial foi dado de fora para dentro. No lugar da conversão religiosa, o comércio aparece como a real força motriz por trás da transformação dos povos indígenas brasileiros. Analisando a questão por outro ângulo, pode-se dizer que a explicação setecentista japonesa é constituída a partir do ponto de vista dos nativos. A força inicial da mudança é o comércio e a vinda de outros povos, mas a modificação ocorre de fato dentro dos indígenas brasileiros como consequência destes contatos.

Neste ponto, a explicação confucionista do processo colonizador é muito diferente da ideia eurocêntrica de imposição de valores a povos menos civilizados. Não seria infundado indicar que, de certa forma, esta explicação parece refletir a visão dos japoneses acerca dos seus próprios contatos com europeus, diminuindo o peso da religião e realçando as transformações no próprio Japão a partir das mudanças na forma como se dava o contato com outros povos.

Esta forma de entendimento do processo colonial ou civilizatório do Brasil é apenas um exemplo de como não-europeus viram a sua história dos contatos com os impérios coloniais. Sanjay Subrahmanyam, desde pelo menos 2005, é forte proponente desta metodologia para melhor compreendermos a genealogia da noção de “história mundial” (SUBRAHMANYAM, 2005). Guias geográficos como os de Nishikawa traziam em si noções de história herdeiras de epistemologias não-europeias, e por isso representam releituras de processos históricos que podem ser úteis para reconsiderarmos o impacto e as consequências dos processos de construção dos impérios coloniais. Sem dúvida, compreender esta trama de noções e ideias acerca da colonização nos facilita rever a globalidade do processo de surgimento da modernidade. E a forte tradição historiográfica japonesa é uma das mais ricas fontes para esta metodologia.

Referências
Rômulo da Silva Ehalt é professor de português na Universidade Keio e na Universidade Internacional Josai, em Tóquio e Chiba, e doutor pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio. Sua área de estudos é o pensamento dos jesuítas no Oriente, e atualmente desenvolve trabalho sobre o uso da teologia moral e da casuística no enfrentamento de questões morais suscitadas no processo de construção dos impérios coloniais na Ásia.
Mail: romuloehalt@gmail.com

ALCIDES, Sérgio. “F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização.” In: Revista Escritos, ano 3, n. 3, 2009, p. 39-53.
ARANO Yasunori. “Kinsei no Taigaikan”. In: Nihon Tsūshi 13, Kinsei 3. Tóquio: Iwanami Shoten, 1994.
CALVI, Giulia. “Cultures of Space: Costume Books, Maps, and Clothing between Europe and Japan (Sixteenth through Nineteenth Centuries). In: I Tatti Studies in the Italian Renaissance, vol. 20, n. 2 (2017), pp. 331-363.
ISHIZAKI Takahiko. “A Representation of India in the Early Edo Period of Japan.” In: Proceedings of the Papers, CAAS 3rd International Conference at SOAS. Disponível em http://www.tufs.ac.jp/ofias/caas/activities/proceedings_soas.html, acesso em 9 de setembro de 2017.
KANAI Toshiyuki. Nagasaki Ryakushi, Jōkan. Nagasaki: Nagasaki Shiyakusho, 1926.
MARCOCCI, Giuseppe. “Escravos ameríndios e negros africanos: uma história conectada. Teoria e modelos de discriminação no império português (ca. 1450-1650).” In: Tempo, vol. 30 (2011), pp. 41-70.
MASSARELLA, Derek (ed.) and MORAN, J.F. (trad.). Japanese Travellers in Sixteenth-Century Europe : A Dialogue Concerning the Mission of the Japanese Ambassadors to the Roman Curia (1590). Londres: The Hakluyt Society and Ashgate Publishing, 2012.
MATSUDA Wataru. Japan and China: Mutual Representations in the Modern Era. Oxon, ReinoUnido: Routledge, 2000.
MOCHIZUKI, Mia M. “Idolatry and Western-inspired Painting in Japan.” In: COLE, Michael W. and ZORACH, Rebecca (ed.). The Idol in the Age of Art: Objects, Devotions and the Early Modern World. Londres e Nova York: Routledge, 2009.
NISHIKAWA Joken. Zōho Kai Tsūshōkō. Kyoto: Kansetsudō, 1708.
______. Shijūni Koku JinbutsuZusetsu. Edo: Enbaiken, 1720
SAITŌ Masataka. DaikōkaiJidai no ChikyūMimonroku, Tsūkai “ShokuhōGaiki”. Tóquio: HaraShobō, 2017.
SHIGEMATSU Shinji. MadorasuMonogatari. Tóquio: ChūkōShinsho, 1993.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. “On World Historians in the Sixteenth Century”. In: Representations, vol. 91, n. 1 (2005), pp. 26-57.
TAKASHIMA Motohiro. “Nihon Jukyō no Tokuchō.”In: KaigaiKyōiku Haken Jigyō (ed.). Nihon Bunka Kenkyū no KokusaitekiJōhōDentatsuSukiru no Kyōiku. Tóquio: Ochanomizu Daigaku, 2009, pp. 187-204.
TANIUCHI Aya. “Nishikawa Joken to ShokuhōGaiki: Zōho Kai TsūshōKō wo Chūshinni”. In: JōchiDaigaku Bunka KōshōGakuKenkyū, vol. 6 (2018), pp. 11-23.
TRAUB, Valerie. “Mapping the Global Body.” In: ERICKSON, Peter and HULSE, Clark. Early Modern Visual Culture: Representation, Race, and Empire in Renaissance England. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2000.
YU, Kam-por. “The Confucian Alternative to the Individual-Oriented Model of Informed Consent: Family and Beyond.” In: FAN, Ruiping (ed.). Family-Oriented Informed Consent: East Asian and American Perspectives. Cham, Suíça: Springer International Publishing, 2015.

13 comentários:

  1. Caro Rômulo,
    Parabéns pelo seu instigante texto.
    Você disse, no último parágrafo: "compreender esta trama de noções e ideias acerca da colonização nos facilita rever a globalidade do processo de surgimento da modernidade."
    Continuando seu argumento: de que maneira você acredita que é possível viabilizar essa ideia de usarmos essas noções de outros povos de quem não estamos acostumados a nos servir das suas tradições de pensamento? Em outras palavras, sendo mais específico: você tem sugestões para que acadêmicos/as brasileiros/as possam entrar mais em contato direto com a literatura historiográfica japonesa, por exemplo, já na sua formação?
    Obrigado!
    Matheus Oliva da Costa.

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    1. Caro Matheus, sugiro textos de Margaret Mehl, Carol Glück e, se me permite, um artigo meu de 2013 sobre historiografia japonesa. Acho que são bons para se começar. Abraço, Rômulo.

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    2. Boa noite.
      Obrigado.
      Quando eu disse "contato direto", me referia a historiografia escrita por japoneses/as, e não sobre o japão. Essas autoras utilizam autores japoneses?
      Gostaria de ler seu texto de 2013. Pode indicar o link ou referência, por gentileza?

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    3. Caro Matheus, existem muitos poucos artigos ou livros sobre historiografia japonesa, mesmo em japonês. De destaque, temos um livro de Nagahara Keiji publicado nos anos 2000, mas é praticamente o único que fala sobre a história da historiografia contemporânea. Em inglês, recomendo estas Mehl e Glück, além de alguns outros autores que lidam com a história global da historiografia (Stefan Tanaka, por exemplo, é muito bom). Meu artigo pode ser encontrado neste link: https://keio.academia.edu/RomuloEhalt
      Abraço, Rômulo.

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  2. Olá,
    Texto muito bem pontuado e incitante, parabéns.
    Dentro desse sentido de construção de conteúdo teórico sobre a formação dos países colonizados temos uma rica produção e no tocante à História do Brasil o próprio Brasil vem sofrendo mudanças desde a Escola dos Annales com a derrubada do Positivismo, onde nós brasileiros estamos reformulando a história dos povos indígenas e da formação do país, nesse sentido levando para o contexto do Japão, existe uma bibliografia que se sobrepôs a essa dos séculos XVI e XVII em que se escrevia baseado em outros preceitos culturais, éticos e morais onde nesse caso deixou de lado toda influência religiosa e que criou uma história de civilização dos indígenas pela moral e de influência exterior, por mais que Nishikawa acreditava que a mudança vinha dos índios? Essa reformulação da História do Brasil - onde já não se concebe o índio como evidenciado em seu texto, um povo "sem lei,fé e rei" e que retirou dele toda essa carga e bárbaro e agressivo - ocorreu na historiografia japonesa?

    Emili Sabrina Ribeiro Silva

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    1. Prezada Emili, até onde sei essa mudança de tom só ocorreu na historiografia contemporânea. Mas pode ser que algum intelectual confucionista tenha se aprofundado no tema. É preciso pesquisar! Abraço, Rômulo.

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  3. Olá,você falou que Nishikawa escrevia num momento de rigor com relação aos livros que vinham do exterior. Neste sentido, Como ele enfrentou o sistema para que a população tivesse acesso aos seus escritos?
    Lorena Raimunda Luiz

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    1. Prezada Lorena, não sei ao certo até que ponto havia controle sobre o que se escrevia a respeito do exterior, mas as publicações passavam por um sistema de censura e aprovação oficial. Abraço, Rômulo.

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  4. Olá, Rômulo,
    que sensacional este seu texto. As imagens devem ser incríveis.
    Eu fiquei pensando se existiria alguma comparação, do ponto de vista dos japoneses, entre estes traços culturais "amorais" dos indigenas e outros traços culturais indianos que, para os jesuítas, por exemplo eram tão graves quanto. Lembro-me, por exemplo, do "sati" - ritual funerário em que a esposa/viúvea era queimada na pira do marido morto.
    E aí? existe alguma comparação entre indígenas e "indianos", nos moldes feitos por Acosta quanto a idolatria, por exemplo?
    Obrigada :)

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    1. Oi Bruna!
      Ótima pergunta. Tenho um colega que pesquisou justamente a imagem da Índia nestes textos, especificamente como se passou de uma noção genérica e "religiosa" de Tenjiku (a Índia mítica do Budismo) para uma Índia geográfica e política. Mas normalmente estes textos não traçam muitas comparações, e na parte sobre Brasil não há nada comparando o processo na América Portuguesa com qualquer outra região. Por isso mesmo que estes paralelos ficam subentendidos, como quis demonstrar com o texto traçando a comparação com o processo japonês de contato com os missionários. Abraço, Rômulo.

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    2. Que legal!
      Pode passar a referência do trabalho do colega?
      Fiquei curiosa...
      Obrigada!
      Bjo!

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    3. Pedro Celestino Morais Neto4 de outubro de 2018 às 19:53

      Boa noite, Rômulo!! fantástico o texto! achei impressionante essa outra visão acerca do processo civilizatório do Brasil. Pois, até então, está colonização portuguesa, pelo menos pra mim, se resumia em comentário ocidentais (América, Europa e África). Achei muito interessante essa visão japonesa acerca deste momento. Enfim, eu gostaria de saber, se os japoneses nesse período ja enxergavam os povos originários da América do Sul, como "os brasileiros" (devido a abundancia e comercialização do pau-brasil)? Faço esta pergunta me baseando na seguinte passagem:

      "mostra um casal indígena claramente identificado como Burajiru-jin伯剌西爾人, ou “brasileiros”."

      Pedro Celestino Morais Neto

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  5. Caro Professor Rômulo, parabéns pela escrita deste texto! Ele nos permite certas reflexões sobre as representações que permearam a mentalidade de outros povos não envolvidos diretamente com as relações coloniais desenvolvidas por europeus e o Novo Mundo....

    Dentre as várias questões suscitadas pelo texto, uma das que me chamou mais a atenção foi aquela relacionada ao modo como o trato com as características peculiares de povos indígenas nas colônias portuguesas na América também esteve relacionado aos processos históricos que envolveram as relações estabelecidas entre o Japão e nações europeias. Nesse sentido, o texto apresenta questões que nos permitem pensar em como as experiências vivenciadas por determinados sujeitos dimensionam o modo como desenvolvem suas narrativas, mesmo que estas sejam relacionadas a objetos de análises exógenos, como no caso em questão.

    Além disso, uma consideração importante, a meu ver, sobre as análises desenvolvidas sobre a colonização portuguesa na América é que, ao problematizar as relações estabelecidas entre indígenas e europeus, assim como a própria concepção de moral, civilização, religião, etc., os intelectuais japoneses mencionados também refletiam em suas obras o modo como entendiam as relações estabelecidas entre eles e determinadas nações europeias.

    Desse modo, gostaria que, se possível, indicasses outros exemplos que nos permitam observar como as próprias experiências vivenciadas pelo Japão, na sua relação com nações europeias no período colonial, acabou concorrendo para uma visão diferenciada sobre o modo como certos intelectuais japoneses passaram a pensar outras nações pelo globo.

    Agradeço antecipadamente pelas considerações!

    Fernando Roque Fernandes
    Universidade Federal do Amazonas
    universidade Federal do Pará

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