Simone Dupla

REALEZA HUMANA E DIVINA NA ANTIGA MESOPOTÂMIA: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDEOLOGIA ESTATAL BASEADA NO MUNDO DIVINO

No Antigo Oriente Próximo, a realeza se constitui como a base da civilização, para estas culturas, apenas os selvagens seriam capazes de viver sem rei, pelo menos era o que acredita Henri Frankfort (1976). A monarquia se formou como pilar da sociedade, sendo que está foi trazida pelas divindades, que desceram a terra e se estabeleceram primeiro em Eridu.

 A cidade de Eridu, a cidade tutelar do deus da sabedoria Enki, foi o lugar de criação do ser humano, nela se situava o Apsu, o rio primordial de águas doces, onde Enki construiu seu templo. Para Guendolyn Leick, a antiguidade de Eridu “era uma questão de conhecimento tradicional, repetido inúmeras vezes, até que se tornou um fato, ou um lugar-comum, no que diz respeito aos eruditos do mundo ocidental que leram esses textos mesopotâmicos antes do sítio ser descoberto”(LEICK, 2001, p.40).

Centro cerimonial e religioso, Eridu teve momentos de opulência e abandono, na época da III dinastia de Ur, lembremos que o rei Amar-Suen voltou-se para essa cidade e (re) construindo “para Enki, seu amado rei, seu amado Apsu”(LEICK, 2001, p.40).

Embora o rei de Ur prodigalizasse recursos e mão-de-obra no projeto do zigurate, Eridu não se tornou nessa época, uma povoação funcional, muito menos uma cidade.Continuou sendo um santuário, agora mais proeminente e importante pela construção da torre do templo, mas ainda sim, um lugar simbólico dentro do império de Ur – um antigo lugar religioso revitalizado por patrocínio régio.

O rei de Ur nomeou sacerdotes e sacerdotisas especiais, e alguns hinos reais sugerem que ritos de coroação dos soberanos de Ur III eram realizados em Eridu. Era também o destino das jornadas litúrgicas dos deuses, uma forma popular de espetáculo e ritual em que as estátuas de várias deidades viajavam por barco de templo em templo, de uma ponta à outra do país (LEICK, 2001, p.40).

Dessa forma, a cidade onde a realeza desceu do céu e fez sua morada, para deleito dos deuses, teve papel importante no imaginário religioso do sul da Mesopotâmia, lugar de peregrinação e de onde a realeza se espalhou pelo restante da região, embora aos poucos tenha sido novamente esquecida, o culto a Enki nunca sessou de existir, sendo transferido para outras cidades e recebendo tentativas esporádicas do retorno de sua opulência, como nos reinados de Hamurabi (1792-1750) e Nabucodonosor II (605-562).

Como espelho fosco, o mundo dos homens se inspirou naquele das divindades, assim tendo bases divinas e sendo uma medida sagrada, a realeza humana teve por bases e inspiração aquela do mundo dos deuses, inclusive com suas traições, guerras e períodos de paz.

Um exemplo disso é o mito “Inanna e Enki”, onde a deusa parte para a cidade de Eridu, onde os MEs (medidas sagradas), espécies de protótipos das relações sociais ou daquilo que constituí o que Kramer chamou de civilização, teve sua origem, elementos que a dividade deseja obter para sua cidade tutelar, Uruk.

Determinada Inanna adentra o Apsu, onde foi recebida com honras, durante o banquete Enki embriagado pela cerveja, ou pela beleza da deusa vai lhe concedendo os MEs:

“Por meu prestigio, por meu Apsu!
A santa Inanna, minha filha, vou oferecer,
sem que ninguém me impeça,
O cargo de En; o de Lagal; a função sagrada;
A augusta coroa legítima e o trono real!
E Inanna os aceitou.
Por meu prestigio, por meu Apsu!
A santa Inanna, minha filha, vou oferecer,
Sem que ninguém me impeça,
O augusto cetro, o bastão de comando, o manto nobre,
O sacerdócio e a realeza!
E Inanna os aceitou” (BOTTÈRO, 2004, p.248).

Guendolyn Leick assinala que “através da interferência de Inanna, eles (os MEs) se tornam imanentes no mundo. Ela os libertou do domínio de Enki, em Eridu, onde se presume que ele os mantivesse fechados a sete chaves” (LEICK, 2001, p.44). Dessa forma, a realeza se espalhou pelas cidades-estados mesopotâmicas e se constituiu de acordo com o mito no modelo adotado pela sociedade humana.

No entanto, esse modelo adotado pelos monarcas mesopotâmicos tinha que ser concedido pela divindade, daí talvez a necessidade os soberanos de se relacionar com Inanna, já que está detinha as insígnias reais necessárias para legitimação do rei e a ela pertencia a realeza, podendo assim dar a quem julgasse digno de tal privilégio.

Sendo, pois uma Medida sagrada, e por tanto por estar associada à natureza divina, esta modalidade de poder não pôde jamais desvencilhar-se da esfera religiosa, visto que a sacralização do rei, ou como colocaram os mesopotâmicos, a decretação de um bom destino ao soberano, esteve ligada desde sempre a sua capacidade de agradar os deuses e de cumprir com suas funções religiosas.

Mas como Medida Sagrada, a realeza humana precisava se aproximar ao máximo daquela constituída no mundo divino, tanto em relação à hierarquia familiar como a autoridade real para julgar, condenar e comandar as relações de seus súditos.

Como o grande pai Enki, deus da sabedoria, e, portanto regulador do mundo dos deuses, ao rei, cabia guiar seu povo, daí a receber o cetro do pastor, título utilizado desde a época proto-dinástica, e em muitos hinos e documentos ser conhecido como tal.

“Sou o senhor das criaturas viventes [...]
Ur-Nammu nascido em alto esplendor [...]
(...) sou o verdadeiro pastor que engorda as ovelhas,
O pasto e o bebedouro [...] foram bons para mim despois que tomei o governo;
Meu nobre conselho mostra seu esplendor e paga os tributos. (...)
(...) Eu sou o pastor, sou o primeiro de Enlil, sou aquele que doa a oferendas alimentícias para o povo”(PEINADO, 1988, p. 154-5).

Nesse hino, Ur-Nammu foi colocado como aquele que traz a realeza a Ur. Já no trecho desse outro hino, Ur-Nammu foi escolhido como pastor por Enlil para erguer as paredes do Ekur, o tempo dessa divindade em Nippur.

“Enlil, o muito alto, cuja decisão é inalterável,
O senhor do grande principado [...],
Nunamnir, que no assento real, lançou o olhar sobre a assembleia e olhou favoravelmente para Ur-Nammu, o pastor,
a Grande Montanha, Enlil, em meio a gente apinhada proclamou:
‘Deixa-lhe ser o pastor, ele levará o majestoso esplendor de Nunamnir!
Restaurará os muros do Ekur, a sublime morada, para
a Grande Montanha, Enlil!’.(...)
Para que aquele pastor, Ur-Nammu, elevasse muito alto.
o teto do Ekur, o deus deu instruções (...)
Aquele pastor fiel, Ur-Nammu, com o apoio de Nunamnir seria o herói por longos dias. (...)(PEINADO, 1988, p.158)

O bom pastor, não apenas guiava seu povo, mas também honrava os deuses, reconstruía e construía templos em honra a eles, realizava os votos, fazia libações e executava os rituais prescritos. Assim, a realeza também ditava pelo exemplo de cumprir com o prescrito e assim garantir o olhar benigno dos deuses. O povo era o rebanho que precisava ser guiado pelo cetro de justiça de seu rei/pastor, o qual, tal qual o exemplo divino semeava justiça, punia o injusto e equilibrava as relações sociais.

Mesmo quando um monarca caia e seu sucessor não tivesse por direito o trono, este buscava de todas as formas construírem um discurso que o legitimasse, principalmente por meio de fórmulas as quais deveria acompanhar seu nome, ou pela construção de uma narrativa mítica que recuperasse seu passado legendário e assim garantisse que este era herdeiro legítimo porque indicado por alguma divindade, que lançou sobre ele seu benigno olhar, ou porque homem fiel não traiu os ritos como seu antecessor.

No geral o sucessor deveria ser o primogênito do rei, mas nem sempre este era apoiado pelos grupos influentes que preferiam um de seus irmãos, geralmente filhos de mãe diferente, que tendo influência e apoiada por grupos rivais ao sucessor legítimo poderia colocar no trono seu rebento. Assim, o jogo de poder para ascensão real também passava por lutas e traições que eram iniciadas mesmo antes da morte do rei.

Seguindo a concepção divina acerca da hierarquia e funções sociais, o rei antes de tudo era o pater familias“cuja missão principal era regular as relações sociais e econômicas no seio da comunidade, de modo que os membros mais fortes não esmagassem os mais fracos” (PEINADO, 1988, p. 61). Como pai generoso, devia zelar pela justiça tanto no microcosmo de sua nem sempre pequena família, como no macrocosmo da sociedade, da qual era também o pai espiritual, uma vez que respondia por esta perante as divindades.

O cajado do pastor era um símbolo de justiça e garantia de que o rei traria paz e conforto aos seus súditos, era também um emblema de um segmento importante da economia, o setor pecuário, do qual muitas vezes o monarca provinha e quando não tinha relações com esse segmento o símbolo vinha lembra-lo de suas obrigações para com este.

O lugal era o representante instituído e escolhido pela divindade para reger a vida da comunidade. Como garantidor do bem-estar do seu povo, o rei tem a obrigação de estender seus domínios, pois precisa de matéria prima e outras fontes de riqueza que sua cidade não produz.

Jean-Claude Margueron lembra que “a história da Mesopotâmia é uma história de cidades. Desde sua origem, ou melhor, desde que os documentos escritos permitem observar, as forças em jogo são as cidades que tentam dominar as vizinhas”(MARGUERON, 2016, p.100). Por mais que tenha havido impérios nessa região, estes seriam apenas a supremacia de uma cidade sobre outras, que sempre estariam em disputa e buscando libertar-se uma das outras, como mostram os documentos da época de Ibbi-Sîn, onde com o enfraquecimento do Império de Ur III, as cidades então sob seu domínio se rebelavam e já não atribuíam as fórmulas dos reis de Ur em sua documentação, formando assim reinos independentes e propensos a se tornarem novos impérios.

Com a própria Ur não foi diferente, para que se erguesse um império sob a liderança dessa cidade, foi preciso que esta se libertasse do julgo da Dinastia Sargônica, que se encontrava sob o cetro de Sharkalishrri, último rei de Akkad, que teria sucumbido durante uma revolta palaciana e cujo governo esteve marcado pelo esgotamento devido às campanhas militares contra os amoritas e os gutis (OTTERMANN, 1994, p.45).

Mas vale salientar que toda construção ideológica sobre a realeza, jamais promoveu a pessoa do rei como autônoma, ele era o vigário do deus, o eleito pela divindade para administrar suas terras e o seu povo.

Durante o III milênio e início do II o título mais frequente utilizado para descrever a imposição divina do rei foi o de “amado” ou “filho” de uma determinada divindade, como foi o caso de Šulgi, “amado” esposo de Inanna. Posteriormente os títulos vão tomando o gosto popular e os fiéis menos abastados também utilizaram deles ao se referirem a sua divindade particular. Sanmartin chama esse uso dos títulos pela população em geral de democratização, creio que seriam apenas reflexos de adoções já existentes, mas que não eram documentadas em épocas posteriores ou que não se encontrou vestígios por estes terem se perdido ou simplesmente não terem sido passados a tradição escrita, mantendo-se somente nas narrativas orais.

Sanmartin, aponta que “durante o III a milênio a.C., os reis se definiram geralmente por sua relação especial com uma determinada divindade, especialmente e frequentemente a divindade feminina Inanna (nos textos acádios Ishtar) deusa da guerra e do amor”(SANMARTIN, 2008, p.64). Dessa forma, não é de se admirar que os ritos da divindade assumam características humanas e divinas, uma vez que o rei, como vigário e esposo precisa atender a toda sorte de desejos de Inanna.

Embora próximo aos deuses, uma vez que eram representantes terrenos destes, os reis não assumiam uma forma divina, continuavam sendo humanos, capatazes das divindades, com exceção dos monarcas de Ur III, que buscaram acrescentar ao seu nome o determinativo divino, iniciado por Šulgi e seguido de seus sucessores, mas este experimento não se repetiu em períodos posteriores, sendo relativizado em período imediatamente posterior a sua morte e mesmo durante sua vida, como já mencionado.

Sendo assim, o monarca era “como” um deus, parecido com estes, em sabedoria, liderança e poder, era o mais famoso entre os seres humanos, ou pelo menos aquele depois dos sacerdotes mais próximo aos deuses. No entanto, essa proximidade se devia aos discursos em que estes traduziam a vontade dos deuses, a ideia de vigário da divindade, não deve ser usada, senão com parcimônia, visto que o rei, homem da guerra e da burocracia não foi de forma alguma um sacerdote no sentido estrito da palavra. Ele ocupava sim, funções cerimoniais, mas seu papel era restrito, não era o oficiante dos ritos, senão uma das personagens orientadas pelos sacerdotes a ocupar o lugar que a divindade o havia instituído.

Ocupavam-se de alguns ritos, entre eles o da coroação, faziam libações, eram os mantenedores dos templos, sua construção arquitetônica e dos funcionários que o compunham, participavam em lugar de honra das festas organizadas às divindades e se mostravam como o mais fiel dos devotos. Em contrapartida, a divindade o abençoava, protegia e dava-lhe um bom destino.

Em meio a sacerdotes, adivinhos e curandeiros, o rei ouvia os presságios e realizava as orientações para atender a vontade dos deuses e manter a prosperidade da sua comunidade, manter o poder em suas mãos usando de estratagemas, que muitas vezes incluía a presença da divindade em campos de batalha ou no seu leito real.

A realeza, assim, se orquestrava como um jogo de interesses entre o templo, o grupo que se encontrava no poder e a capacidade do monarca de apaziguar os conflitos internos e externos dentro dos seus domínios e daqueles que ia conquistando por meio da ideologia religiosa e política.

Historicamente a realeza mesopotâmica tem sua origem na assembleia dos homens livres, uma espécie de sistema tribal, em que os homens mais abastados e influentes tomavam a decisão sobre a vida cotidiana da comunidade, claro que para esta assembleia, a idade dessas pessoas era um determinante, sendo que eram formadas por anciãos.Segundo Sanmartin:

“No principio, as Assembleias deveriam servir para eleger os responsáveis civis e militares da comunidade; mais tarde exerceram normalmente o papel de grêmio de conselho e liberação convocado com caráter ocasional, mas não cabe pensar em controle efetivo do poder real por parte destes organismos”(SANMARTIN, 2008, p.57-8).

Em tempos de conflito um líder era escolhido pela Assembleia, o lugal, palavra suméria que significa grande homem, assumia assim, uma liderança individual que mais tarde evoluiria para a monarquia. Mas para além das fronteiras de sua cidade, os impérios se formaram e desintegraram ao longo do tempo, foram sempre efêmeros.

Leo Oppenheim coloca que a Assembleia se constituía na maneira como a comunidade de cidadãos administrava a cidade sob a presidência de um oficial, pelo menos é que se pode acreditar acerca das primeiras cidades, que autor denominou como cidades ancestrais, opulentas e prestigiadas. Para o autor:

“É de supor que algum tipo de tendência oligárquica teve que emergirem uma assembleia desta classe, na qual desde logo, não era “democrática” no sentido que este termo tem no Ocidente, de que, por certo,se tem abusado em excesso; mas funcionava mais como uma espécie de reunião tribal, em que se chegava a acordos por consenso sob a direção dos membros com maior influência, riqueza e idade”(OPPENHEIM, 2003, p.120).

Esta espécie de corpo administrativo que regulava a ação do rei, na medida em que este tinha que prestar contas de seus atos a eles, como demonstram missivas trocadas entre eles, também lutava por privilégios, os quais deveriam ser ratificados pelo monarca(OPPENHEIM, 2003, p.120-1). A Assembleia com o tempo pode ter perdido o poder de eleger o monarca, mas sua importância na tomada de decisões possivelmente influenciou a permanência ou não destes no trono.

As cidades desejam tanto a conquistas de suas vizinhas quanto manter a liberdade individual, uma individualidade fruto também do clima e da geografia, visto que estiveram umas separadas pelas distâncias das outras, o que possivelmente tornou seu espírito independente.

Henri Frankfort, eminente arqueólogo, que fez diversas incursões na região da Antiga Mesopotâmia, acredita que “a configuração da terra estimulava tendências separatistas e centrífugas”, uma vez que os pequenos povoamentos dos primeiros tempos “se perdiam na planície sem limites; ficaram como unidades ilhadas, cada uma rodeada por campos drenados ou regados, e separada da unidade mais próxima por um espaço pantanoso ou desértico”(FRANKFURT. 1976, p.239).

Esse isolamento criou nas cidades uma identidade voltada para o lugar e as divindades que dela faziam parte, com a submissão de uma cidade por outra, as divindades foram se adaptando assim como as estratégias dos soberanos, que ao adotar divindades dos locais os quais subjugava conseguiu manter uma ideia de coesão social sob os auspícios favoráveis dos deuses.

Por isso, a violência nunca foi o caminho para manter a unidade, ela abria caminho para as conquistas, das quais os deuses guerreiros, legitimadores do rei e sua forma de governo muitas vezes se tornavam parceiros, como é o caso de Inanna que lutava ao lado do rei nos campos de batalha, ou ia a sua frente destruindo o exército inimigo.

Dessa forma, o desejo de vitória dos monarcas em muitos aspectos contribuiu para o prestígio de Inanna, conhecida desde tempos de Uruk arcaico como deusa da guerra. Nesse sentido, Joaquín de Sanmartin (2008) acredita que a personalidade intensa, volúvel e apaixonada de Inanna fosse algumas das características que se relacionam aos seus aspectos bélicos, frutos de sua sede de poder e de posse. A divindade era apresentada como aquela que deseja constantemente expandir seus domínios e utiliza todos os esforços necessários para atingir seu objetivo.

Diversos mitos que se refere a essa divindade, traz histórias de suas conquistas, como o já mencionado “Inanna e Enki”, onde ela traz as Medidas Sagradas para Uruk ou aquele que conquista o país de Elih, “Emmerkar e o Senhor de Aratta” é outro mito onde os aspectos bélicos da divindade se apresentam. Joaquim de Sanmartin (2008) acredita que a face sanguinária e sem piedade da deidade surgiu ou teve o seu ápice a partir de meados do Terceiro Milênio, e estava ligada a política expansionista dos reis, que buscavam na divindade uma forma de assegurar sua presença no trono e legitimar suas guerras de conquista.

Para autor “a política real esteve sempre interessada em sublinhar o caráter guerreiro de uma divindade que contribuía de um modo determinante para a sustentação da ideologia real” (SANMATIN, 2008, p316) do reinado e mantinha o rei sob suas rédeas.

Dessa forma, tanto as conquistas impetradas pela realeza, quando a própria ideia desta se constituía uma vontade dos deuses. E por ser vontade dos deuses era necessário todo um aparato de rituais para coroação do soberano, cujos presságios eram lidos e o destino decretado após ter cumprido os ritos sagrados.

A atuação do rei esteve de modo geral relacionada a algumas características, entre elas, a sua origem, como membro de determinada dinástica, única considerada legítima; a eleição deste pelos deuses, porque dotado de qualidades físicas e psicológicas e sua missão como mantenedor do culto, garantindo assim o bem estar do povo e o equilíbrio social, além é claro de vencer as guerras (SANMARTIN, 2008, p.58).

Um hino dedicado a Šulgi mostra a predileção dos deuses pelo monarca, ao elencar suas qualidades e relacioná-las a dadivas das divindades:

“Eu,o rei, sou o herói desde o seio de minha mãe,
eu, Šulgi, sou um homem poderoso desde que nasci.
Sou um leão de olhar selvagem, nascido do dragão,
sou o rei das quatro regiões do mundo,
sou o guardião, o pastor dos cabeças negras,
sou o herói, o deus de todos os países,
sou o  filho nascido de  Ninsum,
a quem o santo An designou seu coração,
a quem Enlil destinou a sorte,
Sou Šulgi,o amado de Ninlil,
Fielmente cuidado por Nintur,
provido de inteligência por Enki,
o poderoso rei de Nanna,
o leão de Utu que abre as bocas.
Sou Šulgi, destinado ao deleite de Inanna, (...)
Eu, Šulgi, sou o rei poderoso que precede tudo” 
(PEINADO, 1988,p.162-3).
Ou este para Iddin-Dagan:

“Divino Iddin-Dagan,
An quando construiu seu kimakhkhu um grande futuro te destinou.
Um trono sagrado e brilhante te entregou como premio;
Ao pastoreio do país te elevou,
a cabeça dos chefes das regiões ele [...]
Enlil com olhar favorável te comtemplou.
Iddin-Dagan, de palavras de verdade ele te dotou”
(PEINADO, 1988, p.162-3).

Dessa forma, a construção do discurso acerca das qualidades do monarca parece ter sido também uma das características da realeza que se erigiu na terra entre os dois rios.

Essa ideologia real construída como sustentáculo contribuiu para a manutenção do poder real e sua aceitação pelas regiões conquistadas, todo um aparato estilístico de hinos, ritos e cerimônias foram utilizadas como veículo pedagógico que repetia constantemente os feitos do rei, homem escolhido pelos deuses, fiel servo do panteão, pastor eleito desde o ventre de sua mãe, capaz de realizar grandes feitos, exterminar os inimigos e garantir prosperidade, justiça e segurança para aqueles os quais governava.

Referências
Simone Aparecida Dupla, doutoranda em História pela UEM.
E-mail: cathain_celta@hotmail.com

BOTTÈRO, J.; KRAMER, S.N. Cuando los dioses hacían de hombres. Madrid: Akkal, 2004.
FRANKFORT, Henri. Reyes y dioses. Traductor Belen Garrigues Carnicer. Madrid: GREFOL, 1976.
LEICK, G. Mesopotâmia: a invenção da cidade. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
OPPENHEIM, A. Leo. La Antigua Mesopotamia: retrato de una civilización extinguida. Madrid: Gredos, 2003.
MARGUERON, Jean-Claude. Los mesopotâmicos. 5ª edicción. Madrid: Cátedra, 2016.
OTTERMANN, M. Vida e prazer em abundância: a deusa Árvore. Revista Mandrágora. São Bernardo do campo: UMESP, v.1, n. 1 (1994).
PEINADO, Federico Lara. Himnos sumerios. Madrid: Molina 1988.
SANMARTIN, Joaquín; SERRANO, Jose M. Historia antiga del Próximo  Oriente: Mesopotamia y Egito. Madrid: Akkal, 2008.


46 comentários:

  1. Existe alguma metáfora divina que explicite o papel dos grupos dominantes seculared? O desenho dos jogos políticos que expoe o templo os grupos dominantes e o Rei parece indicar que estes dirigentes estão afastados da vida com o templo

    Thalia Abreu de Carvalho

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    1. Olá Thalia, tudo bem? Grata por ler meu texto. Então... esse texto é apenas um pequeno tópico de minha tese de doutoramento, onde discuto as relações entre política, religião e vida cotidiana. Os grupos dominantes e principalmente a monarquia, aquela de Ur III, que é a temporalidade com a qual trabalho, não estão de forma alguma separadas do templo, ou das questões religiosas. Muito pelo contrário, é papel do rei agradar as divindades, pois assim seu reinado será propício, o templo é o grande gestor da vida social, e para ter uma boa relação com o templo, o rei adota práticas que venham contribuir para manutenção de seu reinado, como é o caso da indicação de sua filha como sumo sacerdotisa (sacerdotisa entu) nos templos os quais sua influência alcança, fazer a manutenção, reformas ou construção de novos templos. Esteve presente nas principais festividades das divindades, e inclusive tomou papel no hierogamos com a deusa Inanna. Em épocas mais tardias se falava em rei/sacerdote, mas com a ascensão de Akkad, houve uma separação significativa, mas não total entre o templo e o palácio. As responsabilidades do soberano voltam-se para assuntos mais burocráticos, como os conflitos armados, a segurança das fronteiras e a economia, mas ele como todos os seres humanos é apenas um servo da divindade, embora um dos mais importantes. Assim, descuidar das divindades era um meio de não se manter no poder, além disso, o rei é um homem religioso, tem seu deus pessoal e honra as outras divindades, os grupos que comandam os templos exercem uma força imensa sobre as decisões estatais, enfim, não há como separar religião e política no Antigo Oriente próximo.

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  2. Ianna representava de alguma forma a mulher daquele tempo?

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    1. Olá Arthur, tudo bem? Sim, Inanna representava de uma forma ou outra diversos grupos de mulheres, afinal ela era a deusa das práticas sexuais. Assim, representava cada mulher sexualmente ativa, da noiva a espera ansiosa pela noite de núpcias, das livres, que não se encontravam na via do casamento, das prostitutas, da taberneira, enfim, era a divindade mais cultuada dessas paragens, seu protagonismo traçou estratégias de atuação às mulheres mesopotâmicas, que encontravam no exemplo da deusa, suas demandas cotidianas.

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  3. Na antiga cidade de Eridu na terceira dinastia de Ur o Rei nomeou sacerdotes e sacerdotisas especiais, esses sacerdotes e sacerdotisas tinham somente uma função religiosa ou também desempenhavam outras atividades?
    Gabriel Roberto Santi

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    1. Olá Gabriel, tudo bem? Como sacerdotes e sacerdotisas, essas pessoas tinham um compromisso, com o rei e com a divindade. Como é o caso das sacerdotisas entus, que eram preparadas desde o nascimento para assumir seu lugar como sumo sacerdotisa, gerenciavam o templo, habitavam em uma sala ao lado da câmara da divindade, faziam libações, participavam das celebrações e orientavam o pessoal templário. Politicamente serviam como ponte entre o rei o templo. O pessoal templário era variado, alguns habitavam o templo e eram encarregados das mais diversas tarefas, outros moravam fora dele, poucos eram celibatários, a ideia de sacerdócio na Mesopotâmia é totalmente diferente da nossa, inclusive na forma de servir a divindade, um exemplo é o sacerdócio feminino, para os mesopotâmicos, uma cultura que não tinha mulheres servindo no templo era considerada atrasada.

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  4. Professora Simone,
    De que forma pode-se considerar a Epopéia de Gilgamesh, compilado de poemas sumérios provenientes da produção cultural da 3° Dinastia de Ur, como um 'modelo' para os governantes, dado que o próprio Ur-Nammu vem reclamar sua descendência direta? E também, pode-se considerar Gilgamesh um modelo, mesmo se considerando que suas ações por vezes contariam a vontade das divindades, a luz do argumento de que a figura real era sustentada pela construção de seu direito divino legitimado justamente por sua subserviência a vontade divina?

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  5. Ótimo texto! O título é bastante atraente. O texto deixa nítido que na Mesopotâmia antiga havia a aproximação entre o mundo dos homens e o mundo divinizado dos deuses orientais. Posso dizer baseado no mesmo que essa aproximação ou relação entre o rei e os deuses foi fundamental para a construção das monarquias de outrora. Minha pergunta é: já que a monarquia se formou através de guerras e intervenções divinas é correto afirmar que os reis estavam de certa forma com um pensamento egoísta? ex: O divino protegia o rei e seu império se o rei se submetesse a algo? As duas naturezas( humana e divina) de certa forma era entendida como uma troca de favor? Eu gostaria de saber sua opinião sobre essa questão.
    Carolina Lima Costa

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  6. Prezada professora Simone,
    parabéns pelo belíssimo texto, leitura fluida e bastante atrativa.
    Achei bem interessante a parte que tu falas sobre os ritos de coroações e demais liturgias. Nesse aspecto, qual o papel dos sacerdotes e sacerdotisas ditos "especiais" e que critérios os definiam nesta categoria? Gostaria também que explicasse como os mesmos vinculavam-se à construção dos discursos que davam legitimidade aos reis.

    Lidiana Emidio Justo da Costa

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  7. Em sua opnião,você acredita que esse estilo monarquico religioso funcionaria no brasil se fosse instaurado desde a colonização?
    Gabriela nascimento da silva

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    1. Oi Gabriela, grata por ler meu texto. Então...nunca pensei a este respeito. Veja, primeiro, os mesopotâmicos eram henoteístas, isso já contrasta com o modelo ocidental de divindade, que é monoteísta, embora o rei se dedicasse a apenas uma divindade durante toda a sua vida, prestava culto as outras divindades do panteão. Pois bem, a cada cidade-estado que subia ao poder, uma divindade diferente ascendia junto dela, como é o caso da Babilônia de Marduk, por exemplo. Os deuses principais do panteão, o que chamamos de primeira tríade divina e segunda tríade divina, estiveram de uma forma ou outra presentes no governo do monarca terreno. Vale lembrar que na Mesopotâmia, as divindades são as donas da terra, o complexo templário, é a casa da divindade, e como proprietário de terras, o templo, logo a divindade e consequentemente seus representantes tem grande poder de decisão e na vida social, política, diplomática, etc. Então as concepções dos mesopotâmicos de mundo, de comando diferem muito da sociedade ocidental para que pudéssemos traçar tal paralelo. Nosso processo de colonização foi sempre uma tentativa de eliminação do outro, fruto da mentalidade portuguesa, então como poderia ser diferente do que foi?

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    2. Excelente!

      Professora, observa-se, que a mitologia dos deuses mesopotâmicos era utilizada como forma para fomentar a continuação das linhas de reis no poder. Através dos discursos criava-se uma espécie de aceitação divina e consequentemente a aceitação do povo de seu rei. No Ocidente vemos essa mesma prática e relação com o divino em prol da continua permanência nos tronos monárquicos. Qual relação podemos dar à essas práticas distantes no tempo/espaço, mas, tão semelhantes?

      Jacson Jardel de Souza Silva

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  8. Natália Maira Cunha2 de outubro de 2018 às 17:55

    As mães dos filhos do rei precisavam ter origens nobres ou ser de famílias influentes para conseguir o "posto"? Visto que poderiam escolher outro que não o primogênito para ser rei?

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    1. Oi Natália, grata por ler meu texto. Na Mesopotâmia, o monarca podia ter diversas esposas e concubinas.Os casamentos da nobreza eram na maioria das vezes arranjos políticos, então o monarca desposava as filhas de homens influentes, geralmente seus vassalos.

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  9. Olá Simone Dupla! Tendo em vista as concepções de "Bom Pastor" para o rei, a importância do cajado como simbolo da subsistência através da pecuária, e das obrigações rituais, e somado a isso a narrativa da mitologia bíblica de que Abraão saiu de Ur para a Palestina, seria correto ponderar que a Religião dos Judeus, pelo menos em seu momento inicial, era um tipo de extensão ou de "seita", das concepções religiosas da mesopotâmia?

    João Inácio Bezerra da Silva

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    1. Oi João, boa pergunta. Não creio que fosse uma extensão das concepções religiosas mesopotâmicas, mas claro esta influenciou as culturas hebreias, vistos que os hebreus fazem parte do tronco semita, o qual esteve presente na história do Antigo Oriente Próximo. Mas também vale lembrar que as narrativas do antigo testamento foram escritas no período do cativeiro da Babilônia, quando do envio da elite hebreia para esta cidade, século VI antes de Cristo, se não estou enganada, e embora haja diversos paralelos bíblicos, como o diluvio, o cântico dos cânticos, creio que seria necessário uma investigação mais profunda para fazemos qualquer tipo de afirmação a esse respeito.

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  10. As mães dos filhos do rei precisavam ter origens nobres ou ser de famílias influentes para conseguir o "posto"? Visto que poderiam escolher outro que não o primogênito para ser rei? (Perdão, esqueci de assinar a anterior)

    Natália Maira Cunha

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  11. ADRIANA PANIAGUA FUMAGALLI2 de outubro de 2018 às 20:18

    Boa noite professora, sempre gostei da historia relativa a Mesopotâmia, e esse texto me fez refletir sobre a história de uma forma geral é rica e diversa, o fato se sermos levados a valorizar as culturas greco-romanas, terminam por não valorizar culturas tão ricas, que no limite nos fazem construir idéias equivocadas. Fico feliz em participar deste evento e conhecer tanta coisa nova!!!!

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  12. Tendo em vista que as relações entre o profano e o sagrado nas culturais orientas da antiguidade estavam intimamente interligadas, explique como os jogos de poder e as disputa por espaços privilegiados afetavam a vida dos indivíduos menos favorecido dentro das sociedades.

    Alessandro Lopes Campelo

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  13. Bom dia! Como professor de Historia sou fascinado pela Historia da Mesopotâmia, principalmente no que tange a criação da humanidade por Enki.Minha pergunta é a seguinte: a História da origem da humanidade descrita pelos mesopotamicos pode ser considerada verdadeira ou apenas uma mitologia?

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    1. Olá Benedito, tudo bem? Quando analiso os mitos mesopotâmicos, parto do conceito de Mircea Eliade, onde o mito é uma história verdadeira, porque sagrada, significativa. O mito do mundo, por exemplo, é verdadeiro, pois o mundo está aqui para provar, o mito da morte também, pois somos mortais. Assim, para os mesopotâmicos, seus mitos eram reais, porque explicavam como uma determinada realidade (instituição, cidade, elemento, planta, ser humano, mundo) surgiu.

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  14. Bom dia, professora. Tudo bem? Primeiramente gostaria de parabeniza-la pela explanação a respeito dessa divisão do mundo entre homens e deuses e as relações estabelecida entre esses. As indagações/reflexões que pergunto/dialogo a/com a professora são: A professora entende que a religião de nossos predecessores mesopotâmicos foi um fator essencial para a construção de uma mentalidade que permitisse uma coesão politica, social e administrativa? Será que hoje, com a nossa mentalidade ocidental que busca uma "origem" na antiguidade clássica, acabamos subjugando as crenças mesopotâmicas e esquecemos que estas também influenciaram as crenças da tradição judaico-cristã? Existe em nossa história, alguma sociedade que não tenha se desenvolvido a base de uma mentalidade mistica/religiosa? Ou a negação teísta é fruto de um estado mais consolidado?
    Thalles Henrique Batista dos Santos

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    1. Bom dia Thalles, obrigada por ler meu texto. Sobre as suas questões, para a primeira a resposta é sim, ao contrário de outros grupos em que a coesão social provem da língua, na Mesopotâmia ela foi fruto de sua ideologia religiosa, que influenciou profundamente seu modo de vida. Sobre a segunda: creio que nossa percepção sobre a Antiguidade e esse caminho que tem parada nas sociedades greco-romanas são provenientes do século das Luzes e toda a relação deste com a filosofia e as imbricações sobre razão desse momento, para nós a Mesopotâmia, ou o Ki-en-gi ( o lugar dos senhores civilizados, como os habitantes da terra entre os dois rios se denominavam) ficou restrita a mitologia bíblica e ou aquela dos primeiros historiadores em busca da reconstrução da história da humanidade, uma busca pela origem. Mas outras formas de perceber essa região, ainda vem ganhando espaço na atualidade, principalmente pelas pesquisas europeias e estadunidenses, no Brasil, o crescimento de pesquisas e os frutos delas que possam chegar ao grande público ainda é escasso, uma via ainda a ser construída. Muitos historiadores vem traçando paralelos entre o texto bíblico e as fontes mesopotâmicas, mas no contexto brasileiro ainda carecemos de pesquisadores nessa área. Desconheço uma sociedade que seja desprovida de um mito fundador ou daquele voltado além do mundo físico, pelo contrário, o mito serve de referência para explicar uma realidade objetiva.
      att.

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  15. Boa Noite Professora Simone.
    Em História principalmente, História Antiga que no caso caso tem a Mesopotâmica, a Egípcia dentre outras, os Deuses na maioria das Culturas tiveram um papel importante no desenvolvimento dos povos.
    Na sua Opinião essa personalidade Históricas seriam deuses mesmo incumbidos de fazer os povos viverem em sociedade ou apenas pessoas intelectualmente mais evoluídas pra época que passavam a descendência aos filhos?
    Valmir da Silva Lima

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    1. Olá Valmir, tudo bem? Gordon Childe afirma em uma de suas obras, que as divindades teriam sido pessoas, cuja atuação foi tão importante para a sociedade que passaram para a posteridade como deuses. Há uma diferença substancial em relação a concepção egípcia das divindades, daquela mesopotâmica, embora a influência das divindades não possa ser negadas. Na segunda as dividades eram antropomórficas, ou seja, elas tinham o fenotipo humano, tinham comportamentos e ações como os nossos, mas tudo em grau superlativo, inclusive na sua estatura, amavam, golpeava, guerreavam, traiam, violentavam, casavam, tinham filhos, mas eram infinitamente superiores ao humanos. Na concepção mesopotâmica os deuses criaram os seres humanos para serví-los, o rei não era mais que o capataz destes, ao contrário da egípcia onde o faraó tinha ascendência divina. Não se pode afirmar nada, nesse sentido, nessa cultura, pois não há dados, descobertas, documentos ou vestígios arqueológicos que possam comprovar tal especulação, até porque o cargo de ensi ou lugal não era hereditário, mas frutos de acordos e estratégias. Em relação a Inanna, por exemplo, os primeiros vestígios do culto datam de 3500 antes de Cristo, no local onde esteve o Eanna, o principal templo da divindade e que sofreu diversas modificações e expansões ao longo do tempo. Dela os primeiros registros são de oferendas para dois festivais da divindade: Inanna da manhã, ou Inanna do Amanhecer e Inanna da Tarde, ou do entardecer, há ainda registro de um terceiro festival para Inanna Princepesca, o que demonstra um culto já raizado nessa época e seu surgimento em um período mais recuado, do qual nada sabemos, ainda. Dada a natureza fortuita da fontes, o caráter arqueológico e as explorações escassas nesse território (por diversos fatores), a história desses povos ainda está em construção e cada novo documento ou artefato pode mudar as concepções que temos até o momento.
      att.

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    2. Professora muito grato pelas respostas! Principalmente por esclarecer essa diferença entre Mesopotâmicos e Egípcios.

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  16. Boa noite, Simone.
    Se os Deuses que serviam para definir um rei, é possível pensar numa possibilidade de haver uma Deusa nesse contexto e qual seria sua posição nessa relação entre Deuses e Reis?
    Pelo que pude entender, a figura feminina não estava presente nem entre a divindade e se estava, o seu papel era secundário?

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    1. Olá, sim, havia uma divindade feminina atuante nessa temporalidade, Inanna/Ishtar, meu objeto de estudo, era ela que ratificava o rei ao trono, por meio do hieros gamus. Além de Inanna haviam outra divindades femininas, ela não foi a única, mas possivelmente a mais importante do panteão. Inanna foi uma divindade multifacetada, os historiadores clássicos a chamavam de deusa da guerra e do amor, seu papel foi importante no governo de Sargão I, de Akkad, no período de Ur III e naquele que o sucedeu também atuou como divindade principal. Falo de Inanna no meu livro, fruto da dissertação de mestrado, caso tenha interesse em saber mais sobre essa divindade:UM OLHAR SOBRE A ANTIGUIDADE MESOPOTÂMIA

      O IMAGINÁRIO RELIGIOSO NO CULTO A DEUSA INANNA, pela editora Prismas. Respondendo a sua segunda pergunta, não se pode atribuir a Inanna um papel secundário, na Mesopotâmia, cada divindade representava uma cidade, que estava sob sua tutela, esta deusa, transpôs os limites de Uruk e se tornou a divindade mais cultuada de que temos conhecimento até este momento.

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  17. Ana Paula Sanvido Lara4 de outubro de 2018 às 00:10

    Boa noite, Simone. Considerando-se que quem legitimava o monarca era uma deusa, detentora da Medida Sagrada da realeza, havia possibilidade de existir uma rainha? Se não, como a realeza se constituiu somente entre os homens? Além disso, havia participação política feminina nas questões políticas?
    Abraço!

    Ana Paula Sanvido Lara

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  18. ''Enki nunca sessou de existir, sendo transferido para outras cidades e recebendo tentativas esporádicas do retorno de sua opulência, como nos reinados de Hamurabi (1792-1750) e Nabucodonosor II (605-562)''. Profa. Simone.
    Bom dia Profa. Simone o mito do deus Enki chegou a se estender a outras civilizações ou reinos próximos a Babilônia após o rei Nabucodonossor? Há alguma pesquisa arqueológica em documentos nessa área das divindades entre reinos distintos?

    Prof. Dr. James Magalhães
    jamesmagalhães1@hotmail.com

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    1. Bom dia professor, tudo bem?
      Não tenho conhecimento mais aprofundado sobre Enki, meu objeto de pesquisa é Inanna, mas essa transferência de divindades de uma cidade para outra e seu culto em locais onde não era a divindade tutelar esteve presente na Mesopotâmia, cada cidade, segundo Leick, quando discute as dez cidades mais importantes dessa região, teria um templo dedicado a Enki, visto que além de deus da sabedoria, também era a divindade das águas doces, e a água era essencial para os povos dessa região. Então junto ás divindades tutelares, encontramos nas cidades templos dedicados a outras divindades.Então em relação a Mesopotâmia isto é um fato, mas para além de suas fronteiras não posso fazer esta afirmação, embora isto seja possível. Se levarmos como parâmetros Inanna, foram encontradas estatuetas dela em outros lugares, e há documentos onde um dos monarcas mesopotâmicos diz que enviará sua estátua para um faraó egípcio para restabelecimento de sua saúde. Infelizmente não posso indicar literatura sobre isso, mas é algo muito interessante para refletir.
      Abç

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    2. Excelente esclarecimento Profa. Simone, mesmo não sendo seu objeto de pesquisa sobre a divindade Enki. muito grato por sua atenção

      James Magalhães
      jamesmagalhaes1@hotmail.com

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  19. Com relação a questão de destino, ou seja, tipo um carma imposto pelas divindades, teria como escapar desta imposição, seguir por um caminho contrario a vontade dos deuses, ou essa possibilidade estava fora de cogitação.?

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  20. Parabéns pelo texto e abordagem nele feito. sua escrita levanta questionamentos, curiosidades e esclarecimento sobre os papeis de sacerdotes, sacerdotisas e a relação ser humano-divindade na idade antiga. a pergunta é, de que maneira textos com essa carga de informação podem ser trabalhados de maneira concisa e didáticas em sala de aula da educação básica?

    Lhara Letícia de Oliveira Santos.

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    1. Olá Lhara, tudo bem? Excelente pergunta, é importante unir o conhecimento produzido na academia com aquele da sala de aula. Minha sugestão é se aproximar do universo mental dos alunos, eu trabalho com Ensino Médio, então é possível pegar um gancho com a disciplina de Sociologia, quando se trabalha as questões de instituição social e abordar estas na Antiguidade, usando o modelo mesopotâmico, já trabalhei com HQs e maquetes. Já tracei alguns paralelos com a bíblia e foi bem legal. No fundamental II, minha sugestão é começar levando um mito, a da criação do homem, por exemplo, isso permite que eles entendam porque as divindades comandavam a mentalidade daquelas pessoas, mesmo que de forma ainda preliminar. Há vídeos que mostram as cidades mais importantes, baseados em reconstruções históricas em 3Ds, dando uma ideia do espaço, do lugar. Como fundamental II, eles tem ensino religioso é interessante unir os conhecimentos deles dessa disciplina, pois isso amplia o olhar sobre o outro, mas claro, isso vai depender de escola para escola, de professor para professor. Há lugares que se consegue uma parceria legal e as coisas vão fluindo, em outros, vamos pela experimentação, pelas tentativas. Importante é "traduzir" a linguagem desses documentos para aquela dos educandos, isso facilita e muito a abordagem.

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  21. Olá, primeiramente gostaria de parabenizar-lhe pela abordagem do texto. A minha pergunta, direciona-se no sentido da organização política e hierárquica da sociedade mesopotâmica em destaque. Quando fala em organização de uma "ideologia estatal", a partir de onde consegue relacionar a estrutura simbólica presente na religião, com a ideia ou conceito de Estado? Senti que o texto- coerentemente, não afirma a "existência desta mesma estrutura política e de poder, mas intenta aproximar a sociedade apresentada, através da cultura religiosa e outros aspectos logo adjacentes, a esse tipo de organização social.

    Marcello de Araujo Pimentel.

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  22. Olá Marcello, tudo bem? Então..., quando falamos em uma ideologia estatal, só podemos fazê-lo para aproximar nossa investigação nessa sociedade, o termo pode ser aplicado somente como um facilitador, pois por ser moderno podemos cometer um erro ao impor este à aquela temporalidade. Claro, quando pensamos em Estado, pensamos em uma instituição que regula a vida do indivíduo de um ponto de vista político e econômico, no entanto, essa ideia não pode ser encaixada senão forçosamente sobre estas sociedades, que manteve, mesmo com separação da esfera política e religiosa, entrelaçadas ambas as instituições dada a natureza da concepção e organização de mundo mesopotâmica. Então poderíamos pensar essa concepção de estado a partir de Sargão I de Akkad, o império Sargônico faz muito bem esse jogo entre as duas esferas, com vistas a mantê-las separadas, porém entrelaçadas. Antes dele, poderíamos dizer que não havia uma separação nítida entre ambas as instituições, e é uma época em que a religião exerce seu poder de forma dominante. O auge dessa ideologia estatal provem de Ur III, seu estado burocrático busca abarcar todos os aspectos da sociedade, mas mesmo com todas as mudanças não consegue se desvencilhar do aparato religioso, como forma não só de legitimar o rei ao trono, mas de manter viva as tradições.

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  23. se alguém fosse contra o rei por nao acreditar nas divindades o mesmo seria punido de alguma forma?e qual seria essa punição?

    Alexandro Villanova Gomes

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  24. Se alguém discordasse do rei em relação as divindades seria punido?se sim que tipo de punição seria?

    Alexandro Villanova Gomes

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  25. Bom dia professora! No decorrer da leitura pude identificar aspectos semelhantes entre a sociedade mesopotâmica e a egípcia, principalmente por ambas atribuírem de certa forma na figura do rei/faraó as funções e os atributos divinos, sendo ambos uma representação do divino na terra, existe essa ambiguidade na figura dos mesmos em relação a representarem tanto o poder político-militar quanto religioso, intermediários escolhidos pelos deuses para representa-los na terra... Até que ponto poderíamos dizer que em relação a essas características ocorreram intercâmbios culturais/trocas culturais entre as duas sociedades? Ou não há essa possibilidade? Muito obrigada.

    Isabela de Barros Pletsch

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  26. Prezada Simone, Quais seriam esses veiculos pedagogicos que veiculos que os reis se movimentavam?

    Carlos ryan Silva de araujo

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  28. Simone parabéns pelo artigo.

    Como se dá a transição de sociedades "selvagens", creio eu, em uma comunidade de iguais para este formato onde o rei era uma divindade?

    Francisco Severo de Lima Junior

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  29. Ótimo texto Simone.
    Abordou muito bem o assunto sobre o contexto divino nos governos das antigas civilizações mesopotâmicas!

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  30. Olá boa noite,

    Conheço pouco, ou quase nada, sobre a região Mesopotânica, as duas disciplinas de História Antiga que cursei não abordam com profundidade essa temática. Duas questões me chamaram atenção.
    A primeira consiste na atuação da mulher, mencionada quando trata do processo de sucessão. Temos muitas vezes por dado as limitações das mulheres nas sociedades, e, apesar dessa prática estar latente no artigo, a menção a essa influência exercida pelas mulheres das linhagens reais, levanta questões importantes acerca de seus papéis nas sociedades mesopotâmicas.
    A segunda, está na própria questão abordada pelo artigo, a realeza. Fiquei pensando nas possibilidades de pesquisa que relacionam as questões sobre o conceito de realeza entre sociedades orientais e ocidentais. Posso estar falando devaneios, mas penso que seriam pesquisas instigantes.
    Porém esbarrei numa questão que provavelmente deva ser recorrente a pessoas que não pesquisam as sociedades mesopotâmicas, a falta de familiaridade com os nomes de monarcas, divindades e lugares. Nesse sentido, existe algum clássico, artigo ou dicionário temático que sintetize o significado desses nomes? Isso seria uma ferramenta interessante para não-especialistas que quisessem compreender minimamente essa temática.

    Felipe Calixto Novaes

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